Reflexões urgentes de um 8 de março pandêmico

Autor do Artigo: Elisa Torelly

 

“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” — Simone de Beauvoir.

 

É chegado mais um dia internacional da mulher, momento que aproveitamos para tentar subverter a tônica dominante na mídia hegêmonica e no comércio, desconstruindo os discursos que objetificam, inferiorizam e invisibilizam as mulheres, naturalizando e romantizando a sua sobrecarga física e mental. Vivemos, tristemente, nosso segundo março pandêmico. Ao longo de 2020, não faltaram estatísticas para demonstrar que as mulheres são as mais afetadas pela crise sanitária mundial. Se o 8 de março serve, historicamente, para chamar atenção para a realidade feminina e a desigualdade de gênero, o de 2021 precisa ser aproveitado para escancarar o aprofundamento do abismo entre homens e mulheres no ano que passou.

Dados do IBGE revelam que a pandemia deixou fora do mercado de trabalho mais da metade da população feminina de 14 anos ou mais. E a tendência é que mesmo eventual retomada da economia chegue muito depois às mulheres pobres e com menos qualificação formal. Nesse contexto, a participação das mulheres no mercado de trabalho é a menor em 30 anos. Para além das questões específicas da pandemia, pairam sobre as mulheres as velhas questões estruturais, entre as quais o conjunto de normas sociais que atribui a elas a responsabilidade pelos cuidados domésticos e com filhos – problemas acentuados pela necessidade de isolamento social.

Com as creches e escolas fechadas, diminui o tempo em que a população feminina consegue se dedicar ao trabalho remunerado, o que acarretou uma drástica queda na taxa de ocupação entre as mulheres com filhos de até dez anos. Muitas mulheres se demitiram para conseguir cuidar dos filhos. Nas palavras da economista Milena Prado, “precisamos tirar do anonimato o trabalho da reprodução da vida, dos cuidados, dos afazeres da casa”.

Os setores de serviços e do comércio estão entre os mais atingidos pela crise econômica, e as mulheres compõem grande parte da força de trabalho de tais áreas (sendo exemplos os salões de beleza, os setores de limpeza e o turismo). Mulheres são maioria absoluta nas profissões diretamente vinculadas aos cuidados dos indivíduos, atuando como enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem e agentes comunitárias de saúde. Estão, portanto, na linha de frente do combate à COVID-19, sendo mais expostas aos riscos aumentados de contaminação, além de outros riscos ocupacionais, como excesso de horas trabalhadas, sofrimento psíquico, fadiga e o chamado “burnout”.

Nesse cenário, estudiosos já descrevem as mulheres como “as maiores perdedoras dessa recessão”. Sob uma perspectiva interseccional, tem-se como alarmante o cenário no mercado de trabalho brasileiro, com altos índices de desemprego recaindo sobre a população negra, em especial sobre as mulheres. Isso se explica pela segregação do mercado de trabalho, destacando-se a drástica diminuição de contratações entre as empregadas domésticas. Entre as demais ocupações, houve maior diminuição de postos de trabalho ocupados por mulheres negras, se comparada à queda do número de trabalhadoras ocupadas brancas.

2020 também foi um ano nefasto quanto à violência contra a mulher, tendo havido aumento nas chamadas para o 190 relacionadas ao tema e no número de feminicídios.  O necessário confinamento para evitar o alastramento do vírus aumenta o risco de convivência com potenciais agressores. A esmagadora maioria de mulheres vítimas de violência afirma que o agressor era alguém conhecido, e mais da metade dos casos registrados ocorre em casa.  E a já destacada precarização da condição feminina no mercado de trabalho coloca as mulheres de famílias nucleares heterossexuais numa posição de maior vulnerabilidade à dependência econômica e, consequentemente, a se verem atadas a relações abusivas.

Cada vez mais, o momento é de lutar por políticas públicas que não sejam neutras quanto ao gênero, a fim de que o Estado se mobilize pela efetiva valorização e melhor distribuição das tarefas de cuidado, pela garantia do emprego e por maior segurança para as vítimas de violência doméstica. Ainda, é preciso fazer valer os compromissos internacionais firmados pelo Estado brasileiro, no sentido da promoção e realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas às novas gerações e à sociedade em geral, difundindo e fortalecendo os instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres.

Elisa Torelly é advogada na área de Direito Público, tratando de questões de interesse de servidores públicos e de suas entidades representativas.

Referências:

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/pandemia-deixa-mais-da-metade-das-mulheres-fora-do-mercado-de-trabalho.shtml

http://www.dmtemdebate.com.br/por-que-as-mulheres-sairam-do-mercado-de-trabalho-do-brasil-em-2020/

http://www.dmtemdebate.com.br/covid-19-e-interseccionalidade-a-pandemia-tem-cor/

http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/4/16/a-guerra-tem-rosto-de-mulher-trabalhadoras-da-sade-no-enfrentamento-covid-19

https://www.brasildefato.com.br/2020/11/11/chamadas-para-190-com-casos-de-violencia-domestica-aumentam-durante-pandemia

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