O Decreto 9794 e o abuso do poder normativo do executivo federal

 

Por Lara Lorena Ferreira1

No mesmo dia dos protestos contra os cortes na educação, em 15.05.2019, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou e publicou no Diário Oficial da União (DOU) o Decreto n. 9.794/2019, que dispõe sobre os atos de nomeação e de designação para cargos em comissão e funções de confiança de competência originária do Presidente da República.

Para tanto, invocou o artigo 84, VI, “a” da Constituição Federal, que estabelece que

“Compete privativamente ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”.

Insta destacar, de início, que o aludido artigo constitucional não concede soberania à  presidência para disciplinar sobre normas de funcionamento e organização da administração pública federal. A regulamentação editada deve se coadunar com as demais normas legais e constitucionais, de tal forma que não deve ser aplicada aos casos em que a Constituição ou a Lei prevejam disposição incompatível.

Entretanto, o texto do Decreto não observa esse princípio basilar.

Na prática, o Decreto retira dos reitores das Universidades Federais a autonomia de nomear e designar cargos de gestão nas universidades, como pró-reitores, diretores de unidades, entre outros. Tanto os atos de nomeação, como os de designação para cargos em comissão  e funções de confiança, bem como os atos de exoneração e dispensa, passarão a ser de competência do líder do executivo, caso não haja delegação da mesma. Porém, ressalva o próprio texto do Decreto, ainda que exista delegação de competência, não afasta a possibilidade do ato ser realizado pelo Presidente da República.

O texto confere, ainda, que a definição da nomeação dos cargos deverá ser encaminhada ao Ministro Chefe da Secretaria de Governo, o atual Ministro General Carlos  Alberto dos Santos Cruz, conferindo uma nova atribuição à respectiva pasta, a de avaliar as indicações aos cargos.

Esses comandos confrontam claramente a autonomia administrativa garantida constitucionalmente às universidades públicas.

Diz a Constituição Federal no seu artigo 207:

Art. 207.- As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

É evidente que, para além da flagrante inconstitucionalidade, em razão da incompatibilidade do teor do decreto com a autonomia das universidades, a redação do texto  permite que nomeações e exonerações de servidores sejam realizadas de acordo com  componentes ideológicos, o que tem pautado o atual governo, afastando o servidor que não esteja alinhado ao interesse político circunstancial, e assim, malferindo princípios constitucionais como o da impessoalidade do serviço público, até mesmo atentando contra o direito do artigo 41 da CF, de que o servidor somente poderá ser demitido (i) em virtude de sentença judicial transitada em julgado; (ii) mediante processo administrativo disciplinar, assegurada a ampla defesa; ou (iii) mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurando-se igualmente a ampla defesa.

De mais a mais, o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas (Sinc) instituído pelo aludido Decreto, no âmbito da administração pública federal, fará pesquisa à Controladoria Geral da União e à Agência Brasileira de Inteligência do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (Abin) “para verificação da vida pregressa” do servidor, o que implica em dizer que será realizado uma pesquisa sobre os antecedentes da pessoa designada para ocupar o cargo.

Mecanismos de controle podem servir a fins legais e legítimos desde que apresentem critérios objetivos de controle dentro das garantias constitucionais individuais. Mecanismos de controle pautados em critérios subjetivos, como no caso, à margem dessas garantias,  somente se prestam como instrumentos de controle e perseguição ideológica, o que deve ser rejeitado em um Estado Democrático de Direito.

Vale ainda dizer que não somente as universidades serão afetadas por esse Decreto, da mesma forma o poder de vetar nomeações para as agências reguladoras e autarquias, permitindo ingerência política nas indicações; nos cargos no exterior, interferindo na autonomia do Itamaraty;  e até mesmo no caso da  Presidência e Diretoria do Banco Central, o que pode gerar reflexos negativos na expectativa de agentes econômicos.

É uma tentativa desmesurada de controlar as posições de chefias dos órgãos da Administração Pública Federal, nomeando apenas aqueles que se alinham a forma de agir e pensar do atual governo.

Além da inconstitucionalidade apontada no conteúdo do aludido decreto, violando princípios constitucionais, o próprio instrumento legal utilizado para veicular os comandos é a demonstração cabal da abusividade do poder normativo da Administração Pública, que legisla sobre conteúdo que um ato normativo hierarquicamente inferior não poderia disciplinar e da  incapacidade na forma de atuação governamental, que ao não dialogar com o Poder Legislativo, atua estritamente por meio de decretos executivos e medidas provisórias, impondo comandos os mais arbitrários a toda uma Nação, e que deve se sujeitar, assim, ao controle de constitucionalidade dos seus atos.

Foto: Fulviusbsas

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1 Advogada integrante do escritório Lara Lorena Ferreira Sociedade de Advogados, São Paulo, SP. O escritório é membro do CNASP.

 

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