Resumo:
O presente trabalho [1] tem por objetivo questionar se o avanço do neoliberalismo no Brasil, especificamente, sobre o direito à previdência social corresponde ao rompimento do propósito de garantia de condições dignas de existência da classe trabalhadora quando dependente das prestações previdenciárias. Partindo do exame do texto da Constituição Federal de 1988 e do estudo de documentos da época de sua promulgação, como discursos de constituintes e da análise do texto e projeto da Emenda Constitucional 103/19. Concluiu-se que no processo constituinte houve embate entre aqueles que expressavam o compromisso com o estado de bem-estar social e os representantes do capital que visavam entregar apenas o mínimo como prestações previdenciárias. Também concluiu-se que as bases para o avanço do neoliberalismo, a destruição do direito à previdência e sua transformação em mercadoria rentável ao capital financeiro já se expressavam como a nova fase de acumulação capitalista, A partir da alteração da correlação de forças que permitiu que o texto da Constituição Federal fosse deformado pela atuação de parlamentares e governantes submissos ao capital chegando à contrarreforma da previdência que dificulta o acesso e reduz o valor dos benefícios previdenciários favorecendo a superexploração da classe trabalhadora e apropriação do fundo público e da renda da classe trabalhadora pelo capital financeiro. Concluiu-se por fim que o avanço do neoliberalismo subverte o compromisso do Estado de garantir vida digna de quem depender do amparo da previdência social.
[1] Gratidão à fundamental orientação do doutor e mestre Lawrence Estivalet de Mello, pelo diálogo gentil e respeitosa acolhida de um advogado no caminho da pesquisa. Obrigado Professor pela condução ao resultado do presente artigo.
Gratidão às sócias e sócios do SLPG Advogadas e advogados associados por referendar minha participação como aluno do Projeto de Extensão Diálogos Brasil-Chile: Constituição, direitos sociais e dívida pública.
Gratidão aos camaradas do CNASP, UFBA, Instituto Lavoro, Auditoria Cidadã da Dívida, Fundacionsol, professores e colegas que participaram do Projeto de Extensão Diálogos Brasil-Chile: Constituição, direitos sociais e dívida pública pelas valorosas contribuições e iniciativa de fortalecer o conhecimento e consciência na defesa dos direitos da classe trabalhadora.
1 Introdução
O presente artigo tem o propósito de questionar se o avanço de forças políticas representantes do capital financeiro forçou a ruptura com o compromisso firmado pelo Estado brasileiro com a garantia de condições dignas de existência do povo que depende da garantia de direitos formalmente instituídos no ordenamento como meio de exigência, o que seria alcançado, a priori com a garantia de previdência social e de benefícios suficientes à cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada pelo Regime de Previdência Social.
Da observação das contrarreformas do Estado, a Emenda Constitucional [3] 103/19, suas diretrizes e prováveis efeitos danosos sobre as condições de existência da classe trabalhadora, cogita-se a hipótese de abandono do compromisso com o bem-estar social registrado na Constituição de 88.
Para atingir o objetivo proposto, delimita-se o objeto na análise à Emenda Constitucional 103/2019, em especial no que concerne à redução no valor das prestações impostas pela nova sistemática de cálculo. Pachukanis [4] nos orienta a adentrar ao território inimigo (2017, p.86) para conhecê-lo e ter condições de criticá-lo, ou seja, identificar as generalidades e abstrações da construção do direito para conhecer sua finalidade. Com essa inspiração, examinamos a ordem jurídica relativa aos direitos previdenciários. Partindo de tal critério, buscamos identificar se no atual estado a aniquilação dos direitos sociais é uma necessidade do capitalismo para manutenção e ampliação dos lucros, uma meta estabelecida pela nova etapa do capitalismo, bem como demonstrar se realmente estamos diante do reflexo da opção do capital de abandonar o compromisso de garantia de condições dignas de existência à totalidade da classe trabalhadora.
O conjunto de inquietações supramencionado conduz à verificação de um objetivo específico inicial, qual seja, a existência ou não de um compromisso de sedimentação de um sistema normativo destinado a assegurar os rumos sociais e igualitários fixados na Constituição Federal de 1988. A análise dos textos da comissão de sistematização da Constituição, amparada na revisão de bibliografia selecionada [5] , nos apresenta a Constituição como resultado histórico de um processo global de resistência à exploração capitalista, mas que no Brasil se estabelece tardiamente, em meio ao processo de reestruturação do capital, sedento por reagir à crise que no mundo já impunha o neoliberalismo e a mercantilização dos direitos sociais para promover o lucro dos senhores do capital.
Os textos da Comissão de Sistematização da Constituição de 1988 e discursos de constituintes podem demonstrar as intenções, as tensões e evidenciar se já no nascedouro as garantias fundamentais estavam ameaçadas.
No exame documental das atas da Comissão, trata-se de perguntar: o direito à previdência inscrito na Constituição de 88 reflete as propostas dos constituintes comprometidos com a classe trabalhadora? As garantias fundamentais se materializaram como vitórias e resultado das pressões das massas, que em séculos de luta traçaram o caminho para a garantia de vida digna quando escassas as condições de sujeição à exploração? A contrarreforma da previdência firmada na EC 103/19 termina por solapar o que se colocava como meta mesmo antes de sua efetivação? Ou, pelo contrário, já eram anunciadas e foram esquematizadas no texto resultante do acordo firmado com os representantes do capital que já viam a previdência como fonte de lucro? Seria este o caminho traçado pelo constituinte burguês, já que para os Senhores que ditam as regras do mundo “civilizado” o Estado de Bem Estar Social, em 1988, já não interessava? O que nos dizem as intenções declaradas pelos constituintes?
Igualmente, o artigo se propõe investigar se o avanço do Neoliberalismo, como reflexo do atual estado da luta de classes, que possibilitou que no Brasil pela atuação do governo e parlamento, especificamente a EC 103/19 forçou a deformação do direito previdenciário e a violação dos princípios da Constituição Federal para afastar o Estado dos objetivos de redução da desigualdade social e manutenção da vida digna da população.
Sabe-se que a pressão popular pós-redemocratização, o avanço das lutas populares e a organização dos trabalhadores se refletiram no texto constitucional e forçaram a opção pelo Estado de bem-estar social no campo da seguridade social. Mas em que medida tais compromissos, se existentes, eram verdadeiros? Havia intenção de efetivação? Ou pelo contrário o processo mais serviu de meio para o capital de amenizar os conflitos da época e garantir a dominação sobre a classe trabalhadora, estancando o risco da radicalização das lutas e a perda do poder com uma mudança social revolucionária? Os direitos no Estado Burguês são tão permanentes quanto a resistência da classe trabalhadora? O estudo do direito à previdência no Brasil, sua evolução e retrocesso, mostra que no estado burguês não há segurança para classe trabalhadora?
Este artigo certamente não se propõe a responder de forma definitiva tais perguntas, mas traz elementos para reafirmar a necessidade do embate permanente na defesa dos direitos e avanço no caminho de um mundo justo, sem classes e livre da exploração, firmado na real consciência de igualdade entre os homens e dever de distribuição da riqueza de modo a promover a vida digna de todos.
É preciso estar atento e forte! A tarefa é a reconquista!
[3] Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias.
[4] Utiliza-se o termo contrarreforma, porquanto melhor representa a finalidade e os efeitos da EC 103/19 sobre a previdência social brasileira. O texto aprovado dificulta o acesso e reduz o valor das prestações previdenciária, contrariando o sentido da expressão reforma que denota a intenção de aprimorar para lograr melhores resultados.
[5] Este texto se serve das reflexões de Florestan Fernandes (2014), Sara Granemman (2020), Lawrence Mello (2017), Maria Malta e Jaime León (2017) sobre os sentidos da Constituição Federal de 1988 no campo dos direitos sociais.
2 Compromisso-conciliação no direito previdenciário na Assembleia Constituinte de 1987/1988
Seguindo o curso dos processos constitucionais da América Latina, com algum atraso, o Brasil seguia o caminho estabelecido no pós-guerra como meio de manutenção da ordem social capitalista.
A Carta de 88 estabelece um programa e normatiza meios de efetivação de um Estado com tendências humanizadas e destinadas a dar o mínimo indispensável para a existência digna do homem, cujo valor fora afirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem [6], mas na sociedade brasileira marcada pela escravidão não encontrará, até então, o compromisso da efetivação de direitos fundamentais, como saúde, educação, moradia e previdência.
O cenário mundial que se reflete na Constituição de 1988 é por David Harvey na obra o “O Neoliberalismo História E Implicações:
“O que todas essas várias formas de Estado tinham em comum era a aceitação de que o Estado deveria concentrar-se no pleno emprego, no crescimento econômico e no bem-estar de seus cidadãos, e de que o poder do Estado deveria ser livremente distribuído ao lado dos processos de mercado – ou, se necessário, intervindo ou mesmo substituindo tais processos – para alcançar esses fins, e políticas fiscais e monetárias em geral caracterizadas como”keynesianas” foram implantadas extensamente para suavizar os ciclos de negócio e assegurar um nível de emprego razoavelmente pleno. Um “compromisso de classe” entre o capital e o trabalho foi advogado geralmente como o principal garante da paz e da tranqüilidade domésticas. Os Estados intervieram ativamente na política industrial e passaram a estabelecer padrões para o salário social, construindo uma variedade de sistemas de bem-estar (cuidados de saúde, instrução etc.).” (Harvey, 2008,p18)
A Constituição de 88 representa exatamente o que Haryey descreveu, dá corpo aos direitos sociais como promessa de melhores condições de vida à classe trabalhadora que os exigia em meio ao processo de redemocratização e ascenso de lutas. No Brasil, o clamor popular e o avanço da luta de classes culminaram no texto da Constituição Da República Federativa Do Brasil de 1988, o que é descrito com por Juliana Teixeira Esteves e José Menezes Gomes como uma vitória da classe trabalhadora, com a fixação no texto constitucional do direito fundamental à previdência social e garantias de efetivação.
“A Seguridade Social. Os progressistas brasileiros requeriam a inserção de princípios norteadores de direitos sociais visando ampliar a cobertura dos segmentos vulneráveis e tradicionalmente desprotegidos, o fim das diferenças no tratamento entre urbanos e rurais, a descentralização da gestão das políticas de saúde e assistência social, estabelecimento de mecanismos de financiamento estáveis, garantia de recursos para implantação das políticas públicas. A conquista dessas garantias foi evidenciada na previdência social sob a forma de estabelecimento de salário-mínimo e igualdade entre trabalhadores urbanos e rurais.” Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, V. 11, N. 4, 2020, p. 2572-2608. Juliana Teixeira Esteves e José Menezes Gomes. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50102| ISSN: 2179-8966
[…]
Ao mesmo tempo, havia a forte presença dos ‘aconselhamentos’ do Fundo Monetário Mundial e do Banco Mundial e do Consenso de Washington nas políticas públicas, na medida em que a dívida externa e pública brasileira cresciam. O cenário político era, portanto, formado de dois extremos que não permitiam o consenso parlamentar necessário à votação de medidas mais enérgicas de combate à desigualdade social.” (Esteves e Gomes, 2020, p. 2572-2608.)
Trechos dos debates registrados nos diários da Assembléia Nacional Constituinte nos demonstram os interesses conflitantes entre os representantes das classes sociais.
Por exemplo, o deputado do PT Paulo Paim pronuncia o seguinte discurso:
“Espero que isso não aconteça e que prevaleça o bom senso, na perspectiva de que mantenhamos, no texto, questões fundamentais para a classe trabalhadora, como diretas em 88, aposentadoria integral, atualização dos proventos dos já aposentados e pensionistas, a proibição da demissão imotivada, a não prescrição dos direitos adquiridos, o direito de greve, a redução da jornada de trabalho, o direito ao ensino, à saúde, a salários justos e outras questões já aprovadas na Sistematização”
O discurso do deputado Arnaldo Faria De Sá (PTB/SP), demonstra o embate em prol do direito à prestações previdenciárias suficientes à garantia de vida digna aos segurados, evidenciando que dentre os constituintes havia interessados em rebaixar o texto encaminhado para aprovação.
[…] nossa luta em prol dos aposentados e pensionistas continua, depois de termos conseguido mais de trezentas assinaturas de Constituintes, para apresentarmos uma proposta de capítulo para Previdência Social, assegurarmos e acrescentar vantagens aos aposentados e pensionistas. Desta forma, aqueles que tinham a intenção de suprimir vantagens estarão prejudicados, pois a emenda coletiva, de acordo com o Regimento, tem preferência e, independentemente do parecer do relator, virá ao plenário. Sendo a proposta ampla, teremos com ela garantido pensão integral, a pensão comum, a ambos os sexos; pagamento mínimo, equivalente atualmente ao piso nacional de salários, ou outra nova denominação que lhe venha a ser atribuído:
revisão permanente dos benefícios, inclusive quanto aos atuais, já concedidos; pagamento de reajustamento no mês imediato; concessão do benefício, tomando-se por base os salários corrigidos mês a mês, garantia através de Lei de Aposentadona às donas de casa; aposentadoria, por idade à mulher, aos 60 anos; aposentadoria às professoras, aos 25 anos, e professores, aos 30 anos de serviço. Além do mais, a nível de Congresso Ordináno, apresentamos à Câmara o Projeto de LeI n” 312/88, que, alterando os dispositivos da Lei n° 7.604/87, dispõe sobre a atuahzaçáo dos benefícios da Previdência Social; em outras palavras garante a vinculação dos benfícios ao Piso Nacional de Salários.
Já o deputado constituinte Inocêncio de Oliveira do PFL, em 09/02/1988 [7], em seu discurso estampa qual a expectativa da representação liberal:
“ O Partido da Frente Uberal, através da sua Comissão Executiva Nacional. divulgou uma nota, na qual traça a linha mestra da nossa agremiação politica,sobre o projeto constitucional. no sentido de oferecer aos seus Constituintes orientação programática, da qual resulta uma ação política articulada. coerente e eficaz, reafirmando seus compromissos com a democracia e com a participação, com o desenvolvimento e a justiça social. fundados num moderno liberalismo[…]. Entende o PFL que a Constituição não pode ser elaborada por um grupo, por alguns grupos ou nem mesmo por um partido político. tem dê ser produto do entendimento ou acordo entre as forças políticas da Nação, tendo em vista representar a vontade da maioria do nosso povo. Recomenda, então, as seguintes diretrizes para os trabalhos constituintes: A sociedade deve ser mais importante que o Estado, pois a intervenção do Estado inibe o desenvolvimento, a medida que concorre indevidamente com a iniciativa privada, promove a formação de monopólios e privilégios e desrespeita a racionalidade econômica inerente à atividade empresarial. Também manifesta o direito do consumidor, o respeito ao contribuinte, a pluralidade sindical e a indispensável co-gestão previdenciária, etc. Condena ao atraso político e defende o fim do clientelismo, como medidas essenciais para superação do subdesenvolvimento político, e a erradicação do autorítarismo e populísmo, Nos direitos sociais prega que a Constituição deve assegurar a todos os brasileiros o acesso à educação, saúde, habitação, previdência social, transporte coletivo e nutrição. Combate à incompetência e à corrupção, defende salário justo e garantia dos aposentados. A consolidação da economia de mercado, através da limitação da atuação do Estado à oferta de serviços sociais básicos e participação em setores produtivos cuidadosamente selecionados e articulados com o desenvolvimento nacional. Prega a redução da carga tributária e prioridade às pequenas e microempresas.[…]
O texto demonstra que as ideias principais do neoliberalismo já faziam parte das metas da representação liberal, como economia de mercado e prestação de serviços públicos restritos ao básico.
Portanto, apesar de contraditórios os interesses dos constituintes, é certo afirmar que o sistema da seguridade social esculpido na constituição de 1988 expressa uma conquista da classe trabalhadora, eis que obriga o Estado a constituir mecanismos de garantia de renda ao indivíduo desprovido de condições de entrega de força de trabalho. A luta de classes, a organização dos trabalhadores garantiu a constituição do sistema de previdência social destinado a promover a sobrevivência do idoso e do trabalhador incapaz.
Fato é que o texto da Carta de 88 expressa o compromisso de instituir o Sistema de Previdência Social alicerçado no princípio da universalidade da prestação, equidade e seletividade, que apesar de exigir contribuição previdenciária para a manutenção do vínculo com o amparo social, prometia o recebimento do mínimo necessário para manutenção do padrão de vida de quando o obreiro estiver em atividade.
O sistema de seguridade social visa garantir saúde, previdência e assistência social, apesar de nunca ter atingido a pretensa finalidade das normas impositivas que obrigam a entrega de serviços e prestações necessárias à existência digna do cidadão, passados quase 35 anos da promulgação do texto constitucional, o que hoje se vê é a deformação das garantias e a concreta ameaça de privatização do sistema.
O sistema obriga o indivíduo a contribuir para a manutenção da vinculação do seguro social e em contrapartida compromete a entrega de renda na velhice e incapacidade, permitindo uma vida digna que é certamente o principal compromisso do estado democrático de direito.
Partindo da premissa de que o texto constitucional é resultado do embate entre a classe trabalhadora e o capital que o texto expressa a tentativa de conciliação de classes, o ajuste entre explorados e exploradores que ao mesmo tempo em que preserva a propriedade privada, contraditoriamente afirma o compromisso da erradicação da pobreza e a garantia do bem-estar de todos. Buscou-se conciliar o inconciliável, manter as bases para o desenvolvimento capitalista e supostamente assegurar a redução da desigualdade social.
De modo a restabelecer condições de manutenção do sistema capitalista e contenção do avanço da esquerda revolucionária que mobilizou os explorados questionando o sistema, o capital viu-se obrigado a ceder, firmar pacto de limite à exploração e garantir condições de existência digna aos povos.
Deise Lilian Lima Martins fazendo referência a Karl Marx nos explica como a formação dos direitos sociais tem direta relação com a luta de classes representado ao mesmo tempo vitórias e concessões que se melhoram as condições de vida da classe trabalhadora também se prestam à manutenção do sistema de exploração e como no Brasil a Constituição de 1988 representa um momento histórico de avanço e na busca por melhores condições de vida para aqueles que produzem a riqueza e mas não a detém.
“Atualmente, mais do que em outros momentos – dadas as dificuldades de o próprio modo de produção se reproduzir na sua totalidade planetária2 – a supressão de postos de trabalho e a concorrência intra-capitalista para repor e alargar suas taxas de lucro, exigem aos capitais o extermínio de direitos porque estes devem articular-se à lógica da acumulação como mercadorias. As políticas sociais operadas no modo de produção capitalista, ainda que provisórias e reversíveis, como ensinou Karl Marx, são vitórias conquistadas por lutas políticas do trabalho contra a economia política do capital; mas, contraditoriamente, a conquista de um direito para a classe trabalhadora (ou para algum de seus estratos e frações) é, quase sempre e pela mesma ação, também um ganho para o capital.”
“As disposições constitucionais da Carta de 1988 evidenciam a tentativa de se instituir um modelo de Estado interventor e promotor de bem-estar social, sendo que para manter a estrutura que se propõe a garantir direitos sociais, imprescindível se faz, na contrapartida, uma natureza essencialmente fiscal enquanto sustentáculo do distema. É por meio da sistemática de tributação que se viabilizará a promoção de melhorias socias no contexto do Estado de bem-estar (Martinsp, 2018,p. 82).
No entanto, o exame do processo constituinte traz à tona os embates que resultaram no texto constitucional e nos permite identificar que de fato, como são as concessões do capital, as base aparentemente sólidas da edificação do estado democrático de direito, do estado de bem estar social que levaria à massa brasileira à vida digna, de fato era tão movediça quanto à intenção de manutenção das condições de emancipação da classe trabalhadora.
Viu-se que a disparidade de forças, por exemplo, as bancadas do PMDB e do PFL juntas somavam 431 constituintes, ou seja, 77,10% da Assembléia Nacional Constituinte e que os partidos considerados mais à esquerda, como o PT, PCB, PCdoB e PSB contavam, juntos, com apenas 26 representantes, isto seria um entrave intransponível para edificação de um Estado que levasse à emancipação da classe trabalhadora ou mesmo à efetiva melhoria das condições de vida.
Sobre as expectativas dos representantes dos trabalhadores na Constituinte, o discurso do deputado Luis Inacio Lula da Silva [8], mostra que pela baixa representatividade da classe trabalhadora seria difícil alcançar vitórias efetivas, mas que apesar da resistência de setores conservadores e até reacionários foi possível algum avanço, por exemplo no campo dos direitos sociais:
Em fevereiro de 1987, quando o Partido dos Trabalhadores chegou ao Congresso Constituinte, não trazia nenhuma ilusão de que poderia, através da Constituição, resolver todos os problemas da sociedade brasileira. Entendíamos, já no dia 16 de novembro de 1986, que a composição da Constituinte não seria uma composição favorável aos projetos políticos da classe trabalhadora brasileira, tampouco seria favorável àqueles que sonharam ter uma Constituição a mais progressista possível.
[…]
No mesmo discurso Lula ressalta a pressão conservadora das classes dominantes, que já naquela época utilizavam da falsa informação para passar a ideia de que a partir da promulgação da nova constituição o Brasil seria ingovernável, ou seria destruído em razão da quantidade de concessões dadas à classe trabalhadora.
Neste sentido, Florestan Fernandes como disse: cumprindo a dupla condição de parlamentar e observador apresenta uma descrição do quadro da seguinte forma:
O pacto social que se quer engendrar, na hora mesma em que está prestes a reunir-se um Congresso Constituinte (!), é um embuste gigantesco, infelizmente com muitos precedentes em nossa história de “conciliações e reformas” desse jaez. Uma rasteira mofina e mesquinha. Não satisfeita com sua maioria conservadora “de centro” (sic!), de fiéis e campeões da iniciativa privada, a nação dos poderosos ricos e armados sequer tem paciência de deixar a água correr e a justiça passar. Arvora-se em árbitro e busca, de novo, castrar a história, infligindo-lhe os seus desígnios. O pacto social significa, neste momento, o mesmo que a instauração do golpe dentro do golpe, em 1964, e a imposição, posteriormente, da junta militar e, em seguida, da saída conciliadora através do colégio eleitoral. Presume-se que o povo é burro e que a condição preliminar do conclave nacional, visualizado no Congresso Constituinte, seja a “pacificação dos espíritos”. Zerar os conflitos, afastar os riscos da luta de classes, para, enfim, chegar-se a uma constituição liberal, estéril e pasteurizada.
[…]
No artigo intitulado O Processo Constituinte (2014,p 308) Florestan Fernandes retrata a realidade do processo e nos permite claramente identificar qual a correlação de forças e como o texto constitucional e o Estado por ele emoldurado de fato se destinam à manutenção da ordem capitalista e que não seria a Constituição de 88 suficiente a garantia do Estado Social almejado pelas massas.
A tradição brasileira conduzia o processo constituinte na direção de tornar-se monopólio das elites intelectuais e políticas das classes dominantes.
duas consequências principais seriam, então, irremediáveis: 1°) a maioria parlamentar, representativa de uma minoria econômica e social hegemônica na sociedade civil, ditaria a forma e o conteúdo da Constituição; 2o) a elaboração da Constituição assumiria um caráter inevitavelmente “técnico” e “jurídico”, com os riscos já conhecidos e consagrados de dissociar o processo constituinte da maioria real, a massa dos cidadãos e seus problemas humanos e dilemas sociais concretos, resultantes do desenvolvimento desigual, da satelitização
do Brasil pelas nações capitalistas avançadas e da internacionalização do modo de produção capitalista nos moldes vigentes, da extrema concentração social, racial e regional da riqueza e da cultura, bem como dos imensos bolsões de atraso educacional e de miséria, existentes tanto no campo, quanto em todos os tipos de cidades.[…]
Florestan denúncia que o processo constituinte foi bombardeado por setores da direita, inclusive de extrema direita, membros PMDB, do PFL, do PDS , do PTB etc, representantes das elites econômicas, culturais e políticas que empregaram esforços para evitar a mudança social. Tal realidade permitiu desde logo identificar que ante a composição conservada da ANC não seria possível o avanço almejado a partir do embate no parlamento.
Florestan continua afirmando que o processo fora deturpado, que ideia de uma revolução dentro da ordem que se apresentava possível, eis que proveniente de um processo histórico que representava o clamor das massas que já não aguentavam as condições degradantes de existência, seria frustrado, tendo todasas promessas de avanço social sacrificadas em proveito dos interesses privados e da necessidade da preservação do status quo.
Destarte para reforçar que o que foi descrito por Florestan Fernandes o discurso do deputado Luis Roberto Ponte do PMDB retrata o que os porta-vozes do capital levaram à constituinte:
[…]Parece-nos que a nova Constituição deva inclinar-se para uma redução das dimensões do Estado, para que a sociedade possa crescer e afirmar-se com mais liberdade, pondo o Estado a serviço da Nação e não o contrário, como presentemente sucede. Precisamos de uma carta constitucional que consagre a livre iniciativa com sinceridade e fé nas suas virtualidades, e não através de normas carregadas de reservas, que consagram a liberdade econômica como regra geral, mas a estrangulam de todos os modos através de ressalvas e regras de exceção[…]usado no corpo do artigo
O discurso deixa claro o ideal liberal, a defesa da liberdade decorrente da redução do Estado absolutamente contraditório à ideia de Estado de bem-estar social que vinha na promessa da constituinte.
No entanto, alguns defendem melhorias para a classe trabalhadora, por exemplo, deputado Júlio Costamilan do PMDB- RS, que no discurso que segue fez a defesa da aposentadoria integral e outras garantias sociais propostas na condição de sistematização e via-se ameaçada de supressão do texto final da Constituição do:
[…]Por isso mesmo é que, a esta altura dos debates e das questões suscitadas por grupos formados com diversos objetivos- com anúncio, inclusive, de alterações sensíveis nas conquistas até agora assinaladas, no capitulo referente à ordem social – desejamos deixar expressa a nossa inconformidade com as iniciativas que pretendam, inclusive, suprimir do texto constitucional em elaboração questões como a estabilidade, segurança no emprego e jornada de trabalho, dentre outras. Da mesma forma, posicionamo-nos contra as propostas que visem impedir que os trabalhadores passem a ter direito ao valor integral do salário de contribuição, quando da respectiva aposentadoria, após trinta anos de trabalho, para o homem, e 25 para a mulher.
[…]
O deputado Ivo Lech (PMDB – RS) também denuncia que indiferentes aos males que afligem o povo brasileiro frustra a esperança de mudanças, a expectativa de que seria possível a constituição de um Estado solidário.
Também digno de nota é o discurso do deputado Eduardo Bonfin do PC do B, o qual retrata a pressão popular por melhores condições de vida, em nítido tom de ameaça dá aos representantes do capital a alternativa de pelo texto constitucional promover reformas e manter a paz social.
[…]
Se as conquistas elementares do povo brasileiro, obtidas durante o processo da Comissão de Sistematização, forem liquidadas, trucidadas pelas forças da direita e da reação, uma grande pergunta já começa a ser feita do Oiapoque ao Chuí: Que alternativa restará para o povo brasileiro para encontrar melhores condições de vida? Que alternativa encontrará o povo brasileiro para uma real e efetiva sociedade democrática?[…]
[…]
O rumo a ser dado por estaConstituinte, surgindo uma Constituição à marra do desenvolvimento e dos interesses da maioria dos trabalhadores brasileiros, dará ao povo brasileiro todo o direito, inalienável, de buscar, através de outras formas políticas, a conquista dos seus direitos, tão duramente negados ao longo dos tempos deste País. a.[…]
O deputado alerta que o pavio do povo está curto, ou a constituinte promove as melhorias anunciadas ou o povo certamente a buscará por outros meios. Segue conclamando os deputados a manutenção do pacto político entre as classes, certo que de que não haveria consenso, afirma que haveria de ter concessões arrancadas das classes dominantes pela classe trabalhadora que poderiam levar ao desenvolvimento democrático da sociedade brasileira.
Igualmente importante o destaque das palavras do deputado Eduardo Jorge do PT, que em 31/08/1988, quando ressalta o embate entre a ideia de previdência pública e previdência privada:
O SR. EDUARDO JORGE (PT – SP. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Sr” e Srs. Constituintes, desde a Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, uma grande polêmica se estabeleceu em relação à previdência privada. Existia uma tese de que a previdência, no Brasil,. Os setores ligados à previdência privada com fim lucrativo e sem fím lucrativo, desenvolveram uma grande batalha na Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, depois na Comissão da Ordem Social, para que a tese de que houvesse apenas a previdência pública não fosse vitoriosa.
Nós, que defendíamos esta tese, terminamos por concordar com que a previdência privada continuasse a ter o direito de existir e, não só isso, que tivesse uma garantia constitucional de sua existência.
Era esta a reivindicação básica dos setores da previdência privada. Depois, os setores da previdência privada sem fim lucrativo batalharam para continuar recebendo uma série de benefícios e incentivos.
Também concordamos. Agora, na reta final, o setor de previdência privada com fins lucrativos também quer, além da garantia constitucional da sua existência, ter os mesmos direitos da previdência privada sem fins lucrativos.
O deputado registra, igualmente, que foi travado o embate sobre a exitêncai paenas de previdência pública “para ser igualitária e mais justa, deveria ficar a cargo do Estado”, que foram vencidos seu defensora, mas que tal concessão à capital privado não foi suficiente, além da autorização para explorar a atividade ainda almejavam que a coletividade a sustentasse por meio de isenção fiscal ou incentivos.
O discurso demonstra a crítica do deputado ao financiamento público e mecanismos de incentivo à previdência privada excludente que, nas palavras do deputado, “só beneficia a quem tem dinheiro”em detrimento do incentivo à previdência pública.
O Senador Paulo Paim, à época deputado constituinte, fez a defesa da garantia de aposentadoria por tempo proporcional, sem limite de idade, direito que foi assegurado, mas como já era ameaçado, não tardou a ser suprimido do texto constitucional.
O SR. PAULO PAIM (PT – RS. Sem revisão do orador.) – Sr Presidente, Srs, Constituintes, somente para registrar que nós, do Partido dos Trabalhadores, não aceitaremos, em hipótese alguma, as negociações que estão querendo fazer na Casa, retirando o direito à aposentadoria por tempo proporcional, nem a segunda hipótese, onde querem limitar por idade para que os trabalhadores possam desfrutar de um direito que têm há quase sete décadas. […]
O discurso de Paulo Paim nos permite identificar a intenção de impor tempo mínimo de exploração à classe trabalhadora, não permitir a antecipação da aposentadoria, mesmo que proporcional, é tarefa antiga dos representantes do capital, a qual teve sucesso, como veremos, na contrarreforma da previdência, seja pela imposição de idade mínima, ou seja por penalizar o aposentado com a redução dos proventos diretamente proporcional ao tempo que reduzir de sua exploração.
Os embates ora apresentados mostram claramente o que estava em disputa, bem como que os direitos sociais foram assegurados graças à pressão popular, demonstram ainda que já estavam na mira do capital para serem retirados do texto fosse na constituinte ou como contrarreformas.
Vimos nitidamente a ideia de retardar a aposentadoria e negar valor igual ao recebido em atividade esteve em pauta e teve de ser repelida pelos constituintes comprometidos com a classe trabalhadora.
Na constituinte houve choque entre aqueles que vislumbravam garantir vida digna aos trabalhadores com outros que visavam a manutenção da condição de exploração e tendente a forçar a constituição de previdência complementar privada, para garantia do padrão de vida da época em que o trabalhador esteve em atividade.
Deste contexto, mesmo sem consenso sobre políticas de efetivo combate à desigualdade social o processo constituinte alcança a formulação de texto constitucional com comando claro para elevar ao patamar de direito fundamental à previdência social estabelecendo que deve atender, na forma da lei a cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada, tudo almejando cumprir a finalidade de garantia da proteção social e assegurar o às necessidades básicas do indivíduo e condições dignas de existência.
O texto da Constituição promulgado é expressão das contradições entre o capital e o trabalho, representa a tentativa de conciliação, mas de fato preserva e fundamenta mecanismos de manutenção do sistema de exploração.
Ademais, as sucessivas reformas demonstram a brecha deixada de propósito para revisões no texto quando possível pela alteração da correlação de força e para atender às metas já traçadas pelo neoliberalismo que em 1988 já ditava regras mundo afora.
Por exemplo, a constituição da previdência pautada na solidariedade, na constituição do fundo para custeio da previdência social, que impõe ao segurado a entrega de parte da renda para manutenção da condição de credor da prestação previdenciária, mas também obriga o empregador a contribuir para a constituição do fundo previdenciário o que jamais foi bem aceito pelo capital. A imposição do custeio desagrada o capital que computa o dispêndio das contribuições sociais como custo da folha de pagamento e não como contrapartida e meio de redução da mais valia que indiretamente garante a retribuição por meio de prestação previdenciária
Outra “tendência” que deixou marcas na constituição, como meta para futuras investidas (barrada pela luta popular em 2019) é a capitalização da previdência e a instituição de previdência totalmente privada, a transmutação do direito em privilégio e produto altamente rentável capaz de injetar recursos vultosos para especulação financeira às custas do labor da classe trabalhadora e da necessidade de constituição de renda capaz de garantir existência digna na incapacidade ou velhice.
Toda contrariedade do capital com a garantia de serviços e prestações públicas custeadas pela coletividade e em alguma medida por parte do lucro do capital importa em teses e artifícios que se expressam no poder e resultam nas contrarreformas da previdência gerando retrocesso social em proveito do capital explorador.
No tópico desenvolvido a seguir buscamos identificar o papel da ideologia neoliberal que norteia a nova fase de organização do capital que orientando as contrarreformas como e saída de mais uma crise do capitalismo, condição de sua perpetuação a partir da apropriação do fundo público, dos serviços e prestação públicas para exploração da classe trabalhadora, tudo para manter o domínio e o lucro da classes dominantes.
[6] https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
[7] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/diarios_anc
[8] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/pdf/Luiz%20Inacio%20-%20DISCURSO%20%20REVISADO.pdf
3 O Neoliberalismo – Expressão da vontade do capital na contra reforma da previdência:
Apesar da adoção do desenho de estado social e da assunção do compromisso de garantia de condições dignas de existência da população, no Brasil jamais houve a concretização do que em alguma medida viu-se nos países centrais do capitalismo, uma promessa de bem-estar social que jamais se efetivou e desde a promulgação é atacado pelas mesmas forças que na Constituinte tencionaram para limitar as garantias que se desenhavam como vitórias da classe trabalhadora.
De fato, atualmente a miséria impera e os velhos são obrigados a trabalhar até a morte, mas algum padrão de existência digna é garantido a uma parcela significativa da população.
O papel do Brasil sempre foi à entrega de matéria prima e fornecimento de mão de obra barata ao capital internacional, a burguesia local jamais assumiu ou se propôs a assumir posição de disputa para alteração de tal condição, manteve-se subalterna cumprindo o que os interesses do capital internacional a impõe como controladora local da força de trabalho.
Tal condição não seria revertida em três décadas mesmo que se empregassem esforços para efetivação das políticas públicas programaticamente estabelecidas na constituição. Algum avanço houve, o SUS, por exemplo, sistema de saúde que atende a população, a assistência social que entrega salário mínimo e a previdência social dividida em regime próprio e regime geral que entrega benefícios.
No entanto, desde 1988 ao contrário de desenvolver medidas necessárias à efetivação dos direitos sociais a contraofensiva do capital impôs reformas no sistema normativo brasileiro que restringem condições de entrega de prestações que alcancem minimamente a necessidade da população.
Filiados aos interesses capitalistas, governos e parlamentos sucessivamente expressam seu anseio pela manutenção e restabelecimento de padrão de lucro em reformas que demonstram absoluto descompromisso com o bem-estar social e diminuição da desigualdade social e o interesse de transformar as prestações em privilégios que reverterão em lucros ao sistema financeiro que almeja dominar o sistema de previdência.
Como diz Denise Lilian Lima Martins (Martins, 2018, p.82) citando Marcus Correia e Érika Correia (2012.p.46) as disposições constitucionais da Carta de 1988 evidenciam a tentativa de se instituir um modelo de Estado interventor e promotor de bem-estar social, sendo que para manter uma estrutura que se propõem a garantir direitos sociais, imprescindível se faz assumir, na contrapartida, uma natureza essencialmente fiscal enquanto sustentáculo do sistema. É por meio da sistemática da tributação que se viabiliza a promoção das melhorias sociais no contexto do Estado de bem-estar.
Ora a intervenção do Estado e a tributação ( além da organização da classe trabalhadora [9]), dois dos maiores inimigos do neoliberalismo, que se pauta justamente pelo afastamento do Estado e redução da tributação, firmado como ideologia que se expande pelo mundo como alternativa ao Keynesianismo, o neoliberalismo representa a atuação sistemática do capital contra o estado social, intervém, se apropria de sua estrutura e força o repasse dos serviços públicos à iniciativa privada.
Tanto o estado de bem-estar social quanto o neoliberalismo têm os mesmos propósitos, salvar o capitalismo em momento de crise e conter o acirramento das lutas da classe trabalhadora pelo temor da perda do poder. No entanto, por meios distintos, enquanto o Keynesianismo visava pleno emprego e entrega de concessões como direitos sociais empregando recursos públicos, o neoliberalismo tem no desemprego e na retirada de direitos elementos estratégicos para a recuperação do capital, agora reestruturado como capitalismo financeiro.
Neste sentido a lição de Flávio Roberto Batista nos permite identificar que a redução dos gastos públicos é elemento fundamental para satisfação dos interesses do capital, porquanto sem financiar serviços e prestações o Estado pode reduzir a tributação:
O capitalismo financeiro não é capaz de manter as políticas de emprego e distribuição de renda, o que reflete diretamente no consumo. Aumentam drasticamente os níveis de desemprego e os investimentos produtivos. A produção industrial passa a prescindir do tamanho do mercado consumidor, substituindo o consumo de massa pelo consumo massivo de uma pequena parcela da população, através da geração de necessidades fictícias por meio da publicidade e da estética. (Batista, 2016, p173)
Pautados no combate a todas as formas de solidariedade social na privatização de empresas, liberdade plena ao mercado, não interferência na gestão da economia, precarização dos direitos trabalhistas, ataque aos sindicatos e todas formas de organização social destinadas a mobilização das massas para cobrar do Estado o que lhes é devido, repressão e emprego da força do Estado contra a resistência e criminalização dos movimentos sociais, o neoliberalismo assume a hegemonia e convence parte da classe trabalhadora a pactuar com seus exploradores e eleger parlamentares e governantes que levam a efeito as políticas que agravam a miséria e exploração dos trabalhadores.
Amparado na ideia merecimento atua no ideário da população vendendo a falácia de que o esforço individual é capaz de promover o desenvolvimento de cada um, e isto levaria o mundo ao desenvolvimento necessário para promover o bem estar de todos que mereçam. Segundo a ideologia neoliberal, aqueles que se interessem no sistema conscientemente, por mérito, adquirem os privilégios e a miséria e exclusão social nada mais são do que culpa do indolente que tudo espera do Estado.
Tal ideologia levada a efeito como política de Estado, onde sequer o mínimo fora alcançado mostra-se catastrófica, possibilita a apropriação do Estado por reformas como a reforma da previdência, EC 103/19, para promoção de meios de acumulação.
A contrarreforma da previdência cumpre tripla finalidade, desonera o Estado permitindo a redução da carga tributária, abre espaço para a entrega da prestação da previdência ao capital financeiro, e por dificultar o acesso aos benefícios e reduzir o valor das prestações mantém a classe trabalhadora subjugada à superexploração.
Como dito anteriormente, a reforma da previdência é resultado da nova forma de estruturação do capital pautada na acumulação de capitais iniciada nas décadas de 60 e 70, a partir da necessidade da conversão de direitos em alternativas de ganho.
Wendy Brown, na obra nas ruínas do neoliberalismo – a ascensão da política antidemocrática no ocidente é destacada a vinculação e adequação das ideias neoliberais com a moralidade tradicional a partir da caracterização de assalto à liberdade e à mortalidade toda política social que desafia a reprodução social das hierárquicas de gênero.(Brown, 2019,p. 23)
“O neoliberalismo é um projeto político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático nos Estado-nação”
Combate ao trabalho organizado, na privatização de bens e serviços públicos, na redução da tributação progressiva, e no encolhimento do estado social. diga-se também são normalmente associadas ao autoritarismo.
Melhor definição trazida é “um ataque oportunista dos capitalista e seuis lacaios políticos aos Estados de bem-estar keynesianos, às socias democracias e ao socialismo”.
O neoliberalismo visa desmantelar as barreiras à livre circulação de capitais e consequentemente à apropriação de capital. Os “investidores” apropriam-se de governos que servem ao mercado, o governo é do mercado do mesmo modo que o legislativo serve exclusivamente para regulamentar as concessões e desregulamentar relações de modo a propiciar a apropriação de capital, o repasse do fundo público ao capital e a permissão da superexploração dos povos.
Pois bem, no Brasil cumpria ao legislativo dar seguimento com as reformas, neste contexto de expressão do neoliberalismo sobre o Estado a reforma da previdência, EC 103/2019, foi apresentada pela Proposta de Emenda à Constituição – PEC 6/2019 [10] que na sua essência reflete a sanha deformadora cumprindo o rumo de ajuste fiscal e desvirtuação do que antes fora pensado como direito social e agora deve ser aniquilado em proveito da reserva do fundo público para entrega ao capital especulativo, para pagamento da dívida pública.
Da EC 103/19, resultam normas que precarizam as prestações e afastam o segurado do direito forçando-o a buscar no sistema financeiro a complementação de renda.
Vimos como justificativa para a rapina, no texto da proposta da Emenda Constitucional que resultou no texto da contrarreforma da previdência, que as políticas públicas existentes não atenderam os princípios constitucionais de igualdade e distribuição de renda, como se fosse verdade tal intenção, porquanto o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, como se tal realidade não fosse fruto do sistema que mantém a acumulação da riqueza nas mão de pouco e fosse culpa dos mínimos direitos conquistados pela classe trabalhadora até então.
[…]A Previdência já consome mais da metade do orçamento da União, sobrando pouco espaço para a educação, a saúde, a infraestrutura e provocando uma expansão insustentável de nossa dívida e seus juros. 10. O ajuste, ora proposto, busca maior equidade, convergência entre os diferentes regimes previdenciários, maior separação entre previdência e assistência e a sustentabilidade da nova previdência, contribuindo para a redução do elevado comprometimento dos recursos públicos com despesas obrigatórias, o que acaba por prejudicar investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura. 11. As alterações se enquadram na indispensável busca por um ritmo sustentável de crescimento das despesas com previdência em meio a um contexto de rápido e intenso 44 envelhecimento populacional, constituindo-se, assim, elemento fundamental para o equilíbrio das contas públicas e atenuação da trajetória de crescimento explosivo da dívida pública. De modo geral, portanto, propõe-se a construção de um novo sistema de seguridade social sustentável e mais justo, com impactos positivos sobre o crescimento econômico sustentado e o desenvolvimento do País.[…]
O texto, maliciosamente, afirma as contradições impostas pelo sistema, a miséria, a desigualdade social e PIB negativo, o desemprego, todas as marcas da crise social e da incapacidade do capitalismo de promover reais condições de efetivação do que se propunha o texto original. Mas, ardilosamente, o deformador constituinte subverte a realidade e afirma que a culpa dos males gerados pela lógica da apropriação de riquezas é justamente dos mecanismos erigidos para amenizar as agruras geradas pelo sistema.
Não há dúvida, as reformas são expressão clara e impiedosa do avanço do neoliberalismo, foram impostas pelo governo autoritário amparado no congresso servil ao capitalismo internacional. Ela impõe rebaixamento de direitos juntamente como orientado nas cartilhas neoliberais.
Neste sentido, Sara Granemann desmascara o engodo destinado a fazer crer que a reforma visa o bem da população, quando de fato se destina a solapar as conquistas históricas da classe trabalhadora:
“Nos dias presentes, é comum aos grandes burgueses e aos seus governos entoarem, à maneira de cântico devocional, os direitos sociais como entraves ao crescimento econômico. Revestem a relação puramente social entre crescimento econômico e direitos sociais da mesma força natural, do mesmo inescapável destino de as ‘’pereiras a produzirem peras”. Na mesma cansativa toada, as grandes mídias, igualmente propriedades de grandes capitais, repercutem e, não raro, acrescentam: os direitos prejudicam o crescimento econômico e são responsáveis pelo aumento do desemprego. A mistificação expressa na binária fórmula causa-consequência é esgrimida pela burguesia, à farta e ao modo de chantagem, contra a organização da classe trabalhadora com o fito de eliminar-lhe a capacidade de reação. Paralisia alcançada com êxito quando a própria classe trabalhadora supõe que o desemprego e todos os demais padecimentos dele decorrentes são de sua estrita responsabilidade.”(Granemann, 2020,p. 52) .
Foram exitosos os representantes do capital mancomunados no congresso aprovaram a reforma da previdência, impuseram a redução da proteção social, alteram as formas de custeio e permitem o emprego do fundo público no pagamento da dívida pública, rebaixaram as prestações, algumas à quase metade, como a pensão por morte, e conduzem a classe trabalhadora à condição de vida indigna.
A previdência social no marco da reestruturação do capital é vista como alternativa para capitalizar o sistema financeiro. Seguindo à risca as diretrizes do Banco Mundial, FMI e ditames de Grupos Capitalistas sedentos pelos recursos do fundo público e por espoliar a classe trabalhadora, os representantes do capital investidos do poder passaram ao cumprimento da meta: destruir a previdência pública para propiciar a instituição do novo mercado, a previdência privada.
Pela atuação institucional, o capital, desde 70 como imposição da ditadura militar e nos dias atuais pelos governos e parlamento submissos, força a estruturação de permissivos legais para transferência do fundo público para o capital financeiro que lucra com recursos provenientes dos salários da classe média e dos servidores públicos, que privados de aposentadoria integral, no mesmo valor dos rendimentos recebidos quando em atividade, são forçados, quando podem, a contratar planos de previdência complementar.
Há também a aposta certeira na exploração da miséria, no ganho decorrente do resultado da aniquilação das prestações entregues à camada mais explorada da população por meio de empréstimos, ou seja, anulada a condição de existência com o salário de benefício, resta ao segurado o endividamento com empréstimos consignados.
Com a regulação dos empréstimos consignados, o Estado permite ao capital financeiro apropriar-se de parte da prestação previdenciária. O Estado cria mecanismos com nítida finalidade de promover o lucro do capital rentista. Instituiu verdadeiro sistema inconstitucional contrário aos princípios insculpidos no texto de 88.
Temos então um modelo de espoliação financeira, amparada na exploração do trabalhador e afastamento do Estado de seu dever de promover condições dignas de existência através das prestações previdenciárias.
Para que não reste dúvida do prejuízo, do retrocesso social que levará a classe trabalhadora a condições de vida ainda mais indignas é necessário destacar as alterações, o tamanho do corte realizado nas garantias que resultam no aniquilamento do direito previdenciário, conforme passa-se a expor no tópico que segue:
Desde sua promulgação a Constituição de 1988 tem passado por sucessivas reformas e o Direito previdenciário é alvo constante de “ajustes” impostos pelo capital por meio de emendas constitucionais. Forçadas pelo avanço do neoliberalismo e sua cartilha de ajuste estrutural, ancorada na ideologia do individualismo e falácia do empreendedorismo, propagandeiam a necessidade de privatização das garantias sociais e sua substituição por sistemas privados de complementação de renda e previdência privada.
Independentemente da existência de condições de efetivação de condições individuais de subsistência na velhice ou incapacidade, com o apoio da maioria no Congresso Nacional, servil aos interesses do capital, aprovou a reforma da previdência, EC 103/19 impondo severa redução no valor das prestações, entre outras máculas às garantias como a dificuldade de acesso aos benefícios pelo aumento da idade mínima.
As mudanças introduzidas pela contrarreforma aprovada em outubro de 2019 para os filiados após a promulgação da EC 06/2019 consistem em:
- Fim da aposentadoria por tempo de contribuição.
- Aumento da idade mínima aposentadoria para 62 anos, se mulheres e 65 anos, quando homens acrescidos em ambos os casos de 15 anos de contribuição e 20 anos de contribuição, respectivamente.
- Redução do valor dos benefícios pela alteração da regra que possibilitação excluir da base de cálculo 20% das menores contribuições do período de cálculo do salário de benefício (definido no o art. 26 da EC 103/19). Pelo teor da EC 103/2019 a média calculada será de 100% dos salários de contribuição desde julho de 1994. D
- O valor a ser recebido será de 60% do salário de benefício (que passará a ser a média de todas as contribuições realizadas desde 07/1994), com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição (para homens) ou que exceder o tempo de 15 anos (para mulheres). Assim, para receber 100% do salário de benefício as mulheres precisarão contribuir por 35 anos e, os homens por 40 anos.
Especificamente, quanto ao salário de benefício dos benefícios por incapacidade, que era calculada na forma do art. 29 da Lei 8.213/91, com a reforma da previdência, EC 103/19, a sistemática de cálculo das prestações previdenciárias foi drasticamente alterada para reduzir o valor da renda mensal a ser entregue ao segurado.
A alteração foi impiedosa, rebaixou as prestações que antes eram calculadas a partir da média aritmética dos 80% maiores salários de contribuições passando a empregar 100%, impôs rebaixamento do valor do salário de benefício ao deixar de desconsiderar os 20% menores salários de contribuição.
Igualmente, o salário de contribuição que antes era entregue no percentual de 100% da média para as aposentadorias por invalidez e auxílio doença, passou a ser adimplido no percentual de 60% mais 2% para cada ano de contribuição que ultrapasse 20 anos.
Destarte, os mecanismos de redução do salário de benefício imporão à maioria dos aposentados prestações equivalentes ao mínimo possível, ou seja, o salário mínimo ainda garantido pelo art. 7º da Constituição Federal, o qual comprovadamente não é suficiente para promover a vida digna do cidadão.
Destarte, é impossível não reconhecer que as alterações impostas pela reforma da previdência estabelecem retrocesso social e afastam o Estado do cumprimento da obrigação de garantia de existência digna ao cidadão aposentado, rebaixando o direito previdenciário instituído antes da vigência da EC 103/19.
Aqui compre ser destacado que a EC 103/19 aniquila a possibilidade de cumprimento dos princípios constitucionais erigidos com vistas à redução da desigualdade social, a garantia de bem-estar social e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.
A reforma da previdência é inegavelmente uma vitória do capital que desejava fragilizar as garantias fixadas na Constituição Federal de 1988, bem como é expressão clara da fragilidade dos direitos postos no momento de ascensão das lutas. Agora, uma vez alterada a correlação de forças, o congresso, fiel redator dos ditames do capital, aniquila os direitos assegurados no momento de ascensão das lutas e organização da classe trabalhadora. A vitória da ideologia neoliberal propiciou que a classe trabalhadora escolhesse um parlamento servil aos interesses do capital financeiro que prontamente legislou acatando o comando deformador.
Tal conjuntura possibilitou que fosse ferido de morte o projeto que se colocava como compromisso de promoção da redução da desigualdade social, estabelecendo regras que promovem a superexploração e mantém a classe trabalhadora na miséria.
[9] vide reforma trabalhista, Lei 13467/2017, que além de aniquilar direitos trabalhistas tratou de acatar os sindicatos e fragilizar ainda mais a liberdade sindical.
[10] Proposta de Emenda à Constituição Transformada na Emenda Constitucional 103/2019
4 CONCLUSÃO
O estudo dos apontamentos e discussões que resultaram no texto promulgação da Constituição Federal de 1988 possibilitou verificar que a instituição do Estado Social expresso nas normas que impõem a garantia de condições dignas de existência à classe trabalhadora resultou da pressão popular e do momento histórico de ascensão das lutas. A classe trabalhadora arrancou concessões das classes dominantes. Mesmo contrariando a vontade do capital e seus representantes na constituinte, a Constituição Federal de 88 se propunha a garantir vida digna à classe trabalhadora na velhice ou incapacidade.
Mas os documentos que registram os embates travados na Assembléia Nacional Constituinte comprovam a resistência do capital em estabelecer as garantias que eram exigidas pela massa, as tentativas de limitar direitos e constituir um estado que entregasse apenas o básico e se destinasse ao incentivo e entrega dos serviços e prestações públicas à exploração da iniciativa privada.
Mas prevaleceu o acordo, a conciliação entre o inconciliável que resultou em um texto que ao mesmo tempo que oferece garantias manteve vivas as condições de exploração e, sobretudo a abertura às contrarreformas, que já eram aplicadas pelos governos neoliberais mundo afora. Cederam os trabalhadores pensando em melhorias futuras e também cederam capitalistas, estes pela necessidade de acalmar as massas e conter o risco da tomada do poder, mas não abriram mão da estratégia de retomada do espaço para impor os ideais neoliberais.
A pesquisa permitiu afirmar que a Constituição de 88 nasce de circunstâncias específicas vivenciadas no Brasil que permitiram a instituição de compromissos com o estado de bem-estar social, que jamais se efetivou, mas que se oferecia, quando já se enraizado nos países dominantes e imposta aos países dominados o neoliberalismo, a nova forma de organização capitalista destinada à subversão do estado keynesiano da intervenção estatal destinada a garantir a dignidade da pessoa humana por meio de serviços e prestações públicas.
Mas como visto, o capital não tardou a impor o retrocesso, e desenhar pelas contrarreformas um novo modelo de Estado, agora não destinado à garantia de condições de existência à classe trabalhadora, mas um instrumento de lucro, um mero regulador das atividades econômicas, que antes eram serviços ou prestações e passariam a ser produtos entregues a grupos econômicos que os exploram albergados pelo Estado e financiados pelo fundo público.
Viu-se que Brasil o êxito do capital no controle do Estado levou para o ordenamento, inclusive à Constituição, a expressão de sua política de ajuste fiscal capital e forçou as contrarreformas para aniquilar qualquer condição de concretização dito Estado Democrático de Direito e efetivação dos direitos garantidos em 88.
A contrarreforma da previdência, a Emenda Constitucional 103/2019, representa o êxito daqueles que visavam a redução de direitos sociais, que viam na previdência uma verdadeira fonte inesgotável de recursos. Apesar de não atingir o objetivo maior que era a capitalização e entrega da gestão dos fundos de previdência ao capital financeiro, a contrarreforma da previdência importou em maior dificuldade de acesso às prestações e redução drástica do valor destas.
A redução dos direitos previdenciário estabelece a necessidade da complementação da renda ao segurado, acesso ao sistema de previdência privada oferecida à venda para quem tiver condições de adquirir, ainda, para aqueles mais pauperizados que não tiverem condições de constituir fundo complementar, o sistema oferece os empréstimos consignados (espoliação financeira). Portanto, de um modo ou de outro a imposição de redução das prestações é lucrativa ao capital financeiro.
Seguindo a regra de quanto maior a riqueza de uns maior a pobreza de outros, enquanto os capitalistas somam lucro, a classe trabalhadora passa fome. Sugar o fundo público e a renda da classe trabalhadora é a nova ordem. O ideal liberal expresso na ideologia neoliberal individualista fomenta bases de desenvolvimento de políticas indiferentes ao sofrimento do outro e de aceitação da exclusão.
A alteração da correlação de forças, o êxito da ideologia que leva o explorado a votar em quem lucra com sua exploração possibilitou a eleição de parlamentares e governantes comprometidos com os ditames do capital internacional que impôs a contrarreforma da previdência.
Para o capital a miséria é lucrativa, a insuficiência das prestações previdenciárias movimenta o mercado de capitais e, se um dia a industrialização e desenvolvimento de mercado consumidor no Brasil foi almejada, hoje o fundo público e o salário da classe trabalhadora são as alternativas mais rentáveis e interessantes ao capital.
A contrarreforma da previdência estabelece a realidade na qual a classe trabalhadora em atividade não tem asseguradas condições mínimas de existência e quando inútil à exploração não terá constituído média capaz de refletir em benefício que satisfaça o mínimo indispensável e será exposto à espoliação financeira, comprometendo parte mísera prestação previdenciária com o pagamento de empréstimos consignados.
De tudo importa concluir que ao capital não interessa a garantia de condições de existência digna à classe trabalhadora, ao menos da maioria da classe trabalhadora, eis que quando limita as prestações a um valor que não atende as necessidades básicas, claramente declara sua indiferença com as condições de miséria, com a fome e a morte do excluído.
O avanço do neoliberalismo no direito previdenciário brasileiro, constituiu um Estado que não garante o mínimo e institui a barbárie, que aceita a coexistência de poucos privilegiados e o flagelo de milhões de explorados sem acesso à prestação previdenciária.
A situação atual demonstra que ou a massa trabalhadora toma a direção dos rumos de seu futuro ou está fadada à miséria extrema e sobrevivência indigna. O presente estudo permitiu identificar que a pressão popular e a organização da classe trabalhadora foi capaz de obrigar os constituintes liberais à instituição do texto de 88, mas, também demonstrou que as concessões não são permanentes, que o capital está sempre pronto para recuperar o espaço perdido.
A experiência acumulada em quase 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988 permite concluir que tanto retomar as conquistas é possível quanto a decisão por resolver definitivamente o problema é necessária, ou seja, que abolir o capitalismo e construir de novo sistema sem divisão de classes e abolição da exploração é possível e necessário, porquanto a existência digna não pode ser um privilégio de poucos, que saúde, moradia, segurança, educação e previdência sejam entregues a todos como compromisso de todos independente de condições econômicas ou qualquer outro fator de exclusão empregado pela capital para selecionar quem, atualmente, tem acesso aos bens que assegurem o pleno respeito à dignidade da pessoa humana.
[2] Rivera da Silva Rodriguez Vieira é advogado do SLPG Advogados e Advogadas, escritório membro do CNASP, pós-graduado em Direito Previdenciário e Direito e Processo do Trabalho. Contato: rivera@slpgadvogados.adv.br