Livro | A previdência social dos servidores públicos: direito, política e orçamento (2018)

PREFÁCIO

Por Maria Lúcia Fattorelli – Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia (2015).

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O desafio de falar sobre a Previdência Social dos Servidores Públicos em tempos de desmonte do setor público e do próprio Estado não é tarefa fácil, porém, pode servir de alerta e levantar o debate sobre a necessidade de corrigirmos os rumos antes que seja tarde demais.

A velocidade da privatização de patrimônio público estratégico em condições aviltantes – Embraer, setores da Eletrobras, Petrobras, Caixa Econômica Federal, Embrapa, portos, aeroportos, estradas, entre muitos outros ativos públicos – evidencia a brutal redução do poder de atuação do Estado. A privatização da Casa da Moeda foi temporariamente suspensa, porém, o Congresso aprovou a Lei 13.416/2017, que autoriza a emissão de nossa moeda no exterior, de forma flagrantemente inconstitucional (Art. 164), sinalizando a que ponto chega o descaso com a nossa soberania: desde a Idade Média uma nação é reconhecida por sua capacidade de cunhar a própria moeda.

O retrocesso dos direitos trabalhistas a ponto de o Brasil ser denunciado e classificado em “lista suja” da OIT, por violar convenções trabalhistas, evidencia o descaso para com os direitos sociais no Brasil. Em vez de avançarmos para retirar do desespero os mais de 15 milhões de desempregados e mais de 70 milhões de trabalhadores informais, infelizmente caminhamos para a barbárie, diante das regras que passaram a valer a partir da aprovação da reforma trabalhista e da vergonhosa encenação de que alguns de seus absurdos seriam mitigados por uma Medida Provisória que logo deixaram caducar.

A aprovação da possibilidade de terceirização inclusive de atividades fins no âmbito estatal significa a privatização das próprias funções de Estado, antes tratadas com o devido zelo que exigia que só poderiam ser desempenhadas por servidores criteriosamente selecionados por meio de rigorosos concursos públicos, vinculados de forma permanente ao Estado por meio de um estatuto definidor de limites de atribuições exclusivas que definem claramente o poder/dever do Estado para com aqueles que passam a ser os servidores do público.

Diante da desconstrução dos pilares que sustentam o bom funcionamento do Estado em todas as suas funções e do aviltamento dos direitos trabalhistas, ganha força ainda maior o ataque às regras de proteção previdenciária de ambos regimes: geral e próprio.

No caso do Regime Geral (RGPS), a Previdência Social representa o mais importante instrumento social do país, integrada à Seguridade Social, juntamente com a Saúde e a Assistência Social, possuindo financiamento próprio garantido constitucionalmente por meio de contribuições sociais vinculadas ao seu custeio.

Esse importante sistema de proteção social tem sido alvo de ataques de todos os lados. O seu financiamento está ameaçado pela atual proposta de reforma tributária (PEC 293/04) que tramita no Congresso Nacional, a qual transforma importantes contribuições sociais (COFINS e PIS) em imposto, portanto, modifica a natureza desses tributos. Enquanto a arrecadação das contribuições sociais possui destinação vinculada à sua finalidade ligada à Seguridade Social, os impostos se destinam a um caixa único, e não podem ter destinação específica. Caso aprovada, essa PEC provocará um verdadeiro rombo ao orçamento da Seguridade Social, que não mais contará com as receitas das contribuições extintas e transformadas em imposto.

Outro ataque inesquecível foi a extinção, por Michel Temer, em seu primeiro dia como presidente, do Ministério da Previdência Social, o de maior relevância em termos sociais e de maior orçamento também! Foi esquartejado e suas partes espalhadas por outros ministérios.

A mudança de regras que adiam ou até impedem a possibilidade de aposentação de grande parte da classe trabalhadora brasileira – especialmente os mais vulneráveis informais, intermitentes e rurais – aniquilam com os princípios básicos que regem a necessidade de respeito para com aqueles que cumpriram o seu período laboral e, apesar de submetidos a continuada situação de desrespeito, garantiram a produção de riqueza e alimento.

O mais infame é que a justificativa para esses ataques tem sido a falácia de déficit (fabricado por erro no cálculo que desconsidera todas as fontes de financiamento) e o envelhecimento da população, entre outros absurdos, quando na realidade os problemas ligados ao financiamento da Seguridade Social decorrem da redução da arrecadação de contribuições devido a injustificadas renúncias e benesses tributárias que isentam privilegiados setores de sua obrigação de pagar as contribuições sociais e anistiam devedores por meio de sucessivos programas de REFIS. Fator igualmente relevante tem sido a redução da arrecadação de contribuições em virtude do elevadíssimo desemprego e da informalidade.

No caso do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), objeto da presente obra, a Constituição classificou tal regime em outro capítulo, fora da Seguridade Social, tendo em vista as peculiaridades dos trabalhadores e trabalhadoras do setor público, em especial a relação de trabalho profissional permanente e dependente, de natureza estatutária, imposta unilateralmente pelo Estado que fica responsável pelo pagamento de seus servidores ativos e aposentados, mediante a destinação de recursos a rubricas específicas vinculadas a cada ministério ou órgão público.

Conforme gráfico seguinte, do total pago em 2017, segundo dados do SIAFI (R$2,483 trilhões), 21,75% dos recursos foram destinados à Previdência Social do Regime Geral e 3,91% aos Regimes Próprios de Servidores Públicos Civis e pensões Militares (os gastos com militares da reserva estão dentro da rubrica “Defesa Nacional”):

 

Orçamento Federal (Fiscal e Seguridade Social) Executado (Pago) em 2017 = R$ 2,483 TRILHÕES

 

 

Desde a EC 20/98, seguida da EC 41/2003, as contrarreformas da Previdência Social buscam igualar as condições dos respectivos regimes, nivelando por baixo e empurrando a privatização da Previdência para fundos privados (ou públicos de natureza privada, que dão no mesmo), na modalidade de contribuição definida, ponto final, ou seja, não trata do benefício! Tal modalidade “de contribuição definida” passou a constar do texto constitucional com a EC 41/2003 e, em outras palavras, quer dizer: sua contribuição será definida, porém, não há qualquer garantia de que você receberá algum benefício no futuro; isso vai depender do mercado e pode ser zero ou até negativo, ou seja, você poderá ser chamado a complementar recursos perdidos em operações financeiras desastrosas, como já vimos em diversas ocasiões, a exemplo dos recentes rombos nos fundos Postalis e Funcef . Assim também é o Funpresp e demais fundos de previdência complementar semelhantes nos estados.

Aquele modelo de proteção social criado pela Constituição de 88, alicerçado na universalidade e solidariedade, a cada reforma passa a dar lugar a um modelo privatista, individualista, e vulnerável à especulação financeira. Além de incoerente, chega a ser infame colocar a segurança futura da classe trabalhadora em aplicações de risco! Não teria a menor lógica, a não ser a clara intenção de transformar a Previdência Social de ambos regimes em um grande negócio para o mercado financeiro, que receberá, durante décadas, as contribuições de trabalhadores e empregadores, e não terá a menor obrigação de garantir o pagamento de benefícios, devido à modalidade de “contribuição definida”.

Também não se sustenta a falácia de que o tamanho do Estado no Brasil é exagerado, na maioria das vezes criticando-se a destinação de recursos para as áreas sociais, em especial a Previdência Social, como se aí estivesse a fonte do propagado déficit nominal. O déficit nominal histórico encontra-se nos gastos financeiros com a chamada dívida pública, que nunca foi auditada, e sobre a qual recaem inúmeros indícios de ilegalidades e ilegitimidades, tendo em vista a identificação de diversos mecanismos que geram dívida pública, enquanto os recursos vazam para o sistema financeiro, o que denominamos Sistema da Dívida.

Mas o corte desses gastos financeiros delinquentes, questionáveis e injustificáveis com a dívida pública não está na pauta. Ao contrário, prega-se a necessidade de cortar ainda mais os gastos sociais e investimentos públicos, cujo teto passou a ser norma constitucional com a aprovação da Emenda Constitucional no 95, que deixou fora do teto justamente os gastos financeiros com a chamada dívida pública, e o custo brutal da política monetária suicida praticada pelo Banco Central, assim como as despesas financeiras com “estatais não dependentes”, dentre as quais cabe destacar as novas estatais criadas para operar o esquema fraudulento da “Securitização de Créditos”, que gera dívida pública ilegal e desvia arrecadação tributária durante o seu percurso pela rede bancária, de tal forma que estes sequer alcançarão o orçamento público.

O privilégio do Sistema da Dívida e o impacto dessa verdadeira esquizofrenia na distribuição dos recursos públicos no Brasil, priorizando-se o gasto financeiro estéril em detrimento dos investimentos sociais, tem impedido o desenvolvimento socioeconômico e prejudicado não somente o atendimento aos direitos sociais básicos, mas também tem provocado desindustrialização, queda no comércio, aumento do desemprego e desocupação, jogando milhões de pessoas na pobreza e na miséria e posicionando o gigante Brasil na lanterna mundial em termos de crescimento do PIB. Esse cenário de escassez é inaceitável para um país tão rico como o Brasil, marcado pela abundância em todos os sentidos.

Além de absorver quase a metade dos recursos do orçamento federal anualmente (afetando também orçamentos estaduais e municipais), o Sistema da Dívida tem sido a justificativa para contínuas privatizações de patrimônio público e contrarreformas, em especial a da Previdência.

O estudo do orçamento público e do Sistema da Dívida evidencia claramente que o rombo das contas públicas não está na Previdência Social e muito menos na aposentadoria dos servidores públicos, mas sim no gasto exagerado com o pagamento de juros e amortizações da chamada “dívida pública” gerada por mecanismos que fazem aumentar o seu estoque, enquanto os recursos se destinam para remunerar a sobra de caixa de bancos (quase meio trilhão de reais de 2014 a 2017), prejuízos com swap cambial (cerca de R$200 bilhões entre 2014 e 2015 por exemplo), prejuízos operacionais do Banco Central (por exemplo, de R$142 bilhões em 2009, R$ 33 bilhões em 2010, R$250 bilhões em 2016, R$ 20 bilhões em 2017, R$ 53 bilhões parcial em 2018), juros indecentes e juros sobre juros pagos com novos títulos da dívida emitidos ao arrepio da Constituição Federal (Art. 167, III), entre outros escândalos empurrados para a conta da chamada dívida pública que goza de prioridade absoluta sobre todos os demais investimentos essenciais à vida das pessoas e à economia do país, em especial após a aprovação da EC 95/2016. E mais: caso aprovado o PLP 459/2017, recursos arrecadados dos contribuintes sequer alcançarão o orçamento público, pois antes mesmo serão sequestrados e desviados para investidores privilegiados.

Creio que é chegada a hora de reivindicarmos a nossa soberania – em todas as suas dimensões – e enfrentarmos esse Sistema da Dívida, que não possui o menor escrúpulo por detonar as contas públicas e inviabilizar o funcionamento do Estado brasileiro, que depende de seus servidores. Ao estudar o direito à aposentadoria dos servidores públicos e a natureza de sua atividade essencial à própria existência do Estado, entendo que este livro presta um bom serviço e permite o avanço da indispensável reflexão sobre a necessidade de retomarmos as rédeas do nosso destino, retirando-a urgentemente das garras do setor financeiro. Boa leitura!

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