Compatibilidade entre o subsídio e o pagamento de outras vantagens de caráter especial

Francis Campos Bordas e João Luiz Arzeno da Silva
Janeiro de 2010

Trata o presente de um breve apanhado da posição da doutrina nacional – e rápida incursão na recente jurisprudência do STF – a respeito da compatibilidade entre o regime de remuneração através de subsídios e o pagamento de outras vantagens que encontram amparo no tradicional sistema de “vencimentos”.

Em síntese, tenta-se demonstrar o real sentido do §4º do artigo 39 da Constituição, especialmente a parte em que determina ser vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. Esta expressão é válida apenas para os membros de Poder? Ou seria ela aplicável de forma literal aos servidores públicos, em função da alteração trazida pela Emenda Constitucional 19/98?

No caso específico das carreiras policiais federais, o subsídio foi criado por Medida Provisória posteriormente convertida em lei de forma automática pelo Congresso Nacional, sem qualquer debate ou apreciação de emendas propostas. Aliás, constam nos anais do Congresso Nacional manifestações de parlamentares que reconhecem a inconstitucionalidade da MP, mas, por acordos políticos para “destrancar a pauta” ela seria aprovada mesmo assim .

O que preocupa é que recentemente, em 30.12.2009, o Governo Federal publicou a MP nº 479, que traz as mesmas inconstitucionalidades quando impõe em seu art. 3o modificações na estrutura remuneratória da Carreira de Planejamento e Pesquisa do IPEA, implantando o subsídio como parcela única remuneratória, vedando o recebimento de quaisquer outras vantagens, mesmo que recebidas por decisão judicial transitada em julgado ou que tenham natureza indenizatória ou pessoal. Assim, a julgar pela forma açodada com que a MP 305/2006 tramitou no Congresso Nacional, a conjuntura política atual, até porque é a mesma, leva a pressupor que não restará outra saída aos servidores se não recorrer ao Poder Judiciário.

Não se questiona neste trabalho a importância do subsídio como instrumento de organização mais eficaz dos gastos públicos. O objetivo é apenas compatibilizar a figura do subsídio com as demais vantagens previstas em lei para contraprestar situações especiais de trabalho, o que, aliás, já é defendido pelo festejado Celso Antonio Bandeira de Mello , seguido por outros expoentes:

“Como se verá logo em seguida – ao se tratar do limite remuneratório dos servidores públicos -, o disposto no art. 39, §4o , tem que ser entendido com certos contemperamentos, não se podendo admitir que os remunerados por subsídio, isto é, por parcela única, fiquem privados de certas garantias constitucionais que lhes resultam do §3o do mesmo artigo, combinado com diversos incisos do art. 7o , a que ele se reporta. Por esta razão, quando for o caso, haverão de lhes ser editado tais acréscimos, deixando, em tais hipóteses, de ser única a parcela que os retribuirá.
Aliás, a expressão ‘parcela fixa’ é rebarbativa, pois ‘parcela’ significa parte de um todo maior – no que se nota, ainda esta outra vez, a ‘qualificação’ dos responsáveis pelo Emendão.”

Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“Mesmo deixando de lado essa impropriedade vernacular, o dispositivo, que se propõe a definir juridicamente o que venha a ser subsídio, tampouco é propriamente exato, nem preciso, nem é claro.
Não é exato, porque tendo definido a espécie remuneratória como constituída de parcela única, como sendo até sua principal característica, desconsiderou que, norma da mesma hierarquia e eficácia, mandava agregar aos estipêndios de qualquer ocupante de cargo público, sem distinção, vários acréscimos pecuniários garantidos a título de direitos sociais (art. 7º, VIII, IX, XII, XVI e XVII, CF).
Tampouco é preciso, porque o estipêndio em parcela única excluiria o cômputo de verbas indenizatórias, como as diárias e ajudas de custo, que serão sempre e efetivamente devidas, pois o Estado não se pode locupletar com prejuízo de seus próprios servidores que sejam obrigados a despender recursos pessoais para atender a circunstância excepcionais, no desempenho do serviço público.
Tampouco, enfim, é claro, porque deixa sem previsão a que título se dará o pagamento de parcelas referentes a cargos em comissão e a funções gratificadas, que presumidamente não deverão ser agregadas aos subsídios nem, tampouco, exercidas graciosamente, bem como de parcelas já legitimamente agregadas aos vencimentos sob a forma de direitos pessoais, deixando dúvidas sobre a forma em que se processarão essas remunerações, ante a regra da ‘parcela única’.”

Odete Medauar:

“O sentido de parcela única, sem qualquer acréscimo, é atenuado pela própria Constituição Federal; o § 3º, do art. 39 assegura aos ocupantes de cargos públicos vários direitos previstos para os trabalhadores do setor privado: décimo terceiro salário, salário-família, adicional noturno, remuneração por serviço extraordinário, adicional de férias; tais direitos representam acréscimos ao subsídio. Também hão de ser pagas aos agentes públicos despesas decorrentes do exercício do cargo, como é o caso das diárias e ajuda de custo”

Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no artigo 39, § 3º, a norma que manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII E XXX,” (grifos ausente no original)

Dirley da Cunha Júnior:

“Subsídio, portanto, consiste em nova modalidade de retribuição pecuniária paga a certos agentes públicos, em parcela única, sendo vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória. Sem embargo disso, a própria Constituição Federal, em face do § 3º do art. 39, permitiu o acréscimo ao subsídio de certas gratificações e indenizações, e determiados adicionais, como a gratificação de natal, os adicionais de férias, de serviços extraordinários, as diárias, as ajudas de custo e o salário-família.”

Complementando o rol dos ilustres administrativistas, a Ministra do STF, Carmem Lúcia Antunes Rocha acompanha o entendimento da compatibilidade dos regimes remuneratórios, em se tratando de servidores públicos organizados em carreira:

“Daí se tem que não há qualquer proibição constitucional a que o agente público, descrito dentre aqueles elencados na norma do art. 39, § 4º, venha a perceber, em sua remuneração, e não em seu subsídio, outra parcela que corresponda a uma circunstância específica, esporádica e com fundamento diverso daquele relativo ao valor padrão básico devido em função do exercício do cargo. ..

Tanto os adicionais ou as gratificações são aqui sublinhados porque, tendo sido apontados, expressa e exemplificativamente, pelo constituinte reformador no texto do artigo 39, § 4º, poderiam ser considerados como vedados sempre. Não parece seja este o ditame normativo contido naquele dispositivo….

Subsídio não elimina nem é incompatível com vantagem constitucionalmente obrigatória ou legalmente concedida. O que não se admite mais é a concessão de um aumento que venha travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é. A vantagem guarda natureza própria, fundamento específico e característica legal singular, que não é confundida com os sucessivos aumentos e aumentos sobre aumentos, que mais escondiam que mostravam aos cidadãos quanto cada dos seus agentes percebia em função do exercício do seu cargo, função ou emprego público.” [5]

Portanto, o subsídio é salutar e bem recebido, se respeitado seu real conceito, ou seja, uma única forma de remuneração do cargo que aglutina o até então indesejável penduricalho de rubricas – que nada mais eram que vencimento básico disfarçado. Em outras palavras, o que era vantagem permanente inerente ao cargo do servidor, passa agora a ser remunerado de forma única, por subsídio. Por outro lado, não se pode ignorar que dois servidores do mesmo cargo, podem desempenhar suas atividades de forma diversa: um numa jornada diurna e outro na noturna, por exemplo; ou então podemos ter o professor que ministra suas aulas expositivas de história e o professor que ministra aulas práticas que envolvem manuseio de material radioativo. O cargo é o mesmo, mas atividades são diversas. E é justamente esta diversidade de situações concretas de trabalho que leva a doutrina a defender a coexistência dos dois regimes de remuneração, em perfeita sintonia. Agora, não se pode tolerar é que sejam ultrapassadas estas barreiras, de forma que o subsídio seja usado como pretexto para sumariamente suprimir vantagens que encontram expressa previsão legal e constitucional.

Por derradeiro, cumpre destacar a recente decisão do Plenário do STF em ADI acerca da compatibilidade entre o instituto do subsídio e demais vantagens remuneratórias inerentes às funções exercidas de fato pelo servidor.

Recentemente, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar em ADIn n. 3.923-7, julgando em caráter de urgência a constitucionalidade da Lei n. 8.592, de 30 de abril de 2007, do Estado do Maranhão, que pretendia instituir o subsídio como a única forma de remuneração de todo o funcionalismo estadual, suspendeu liminarmente a eficácia da lei, entre outras, pelas mesmas razões levantadas na doutrina referida acima. Dentre os inúmeros argumentos, convém enfatizar o central: o subsídio não se presta a uma generalização, ignorando que o sistema jurídico brasileiro defende uma diferenciação de retribuição pecuniária para o trabalho insalubre, perigoso, noturno e excepcional, não podendo todas estas vantagens serem sumariamente ignoradas. O voto do Ministro Carlos Brito, bem sintetiza este entendimento:

“Entendo também presente o periculum in mora , porque, pelo menos prima facie, as carreiras do Estado, concebidas pela Constituição como remuneradas por um sistema novo de subsídio, por definição, inadmitem uma generalização, como se fez agora na lei adversada.”(Grifou-se)

Adiante, segue o Ministro:

“A dualidade sistema de remuneração mediante vencimento X sistema mediante subsídio há de permanecer. São numerosos os dispositivos da Constituição que dão conta dessa dicotomia e que restariam com sua eficácia absolutamente inutilizada se uma lei do Estado fizesse de todos os cargos, indistintamente, de cambulhada, um critério para instituir um sistema remuneratório à base de subsídio, que é absolutamente incompatível com quaisquer acréscimos remuneratórios. E a Constituição, em muitos dispositivos, cuida exatamente de acréscimo remuneratório. Esses dispositivos, mais do que funcionalmente empobrecidos, restariam inócuos na sua operatividade.”

Percebe-se, portanto, o claro entendimento do julgado no sentido de se restabelecer a ordem jurídica com o retorno da legislação anterior à implantação do subsídio. Por outras palavras, as vantagens decorrentes de situações especiais de trabalho e aquelas que encontram assento legal específico e que em nada se confundem com “vencimento básico”, não poderão ser rechaçadas por lei ordinária, sob pena de ultraje à Constituição Federal vigente.

Em síntese, a imprecisão vernacular do §4º do artigo 39, ao lançar mão da expressão “parcela única” já denunciada pela doutrina brasileira, inclusive pelo órgão máximo do Judiciário, corrobora nossa conclusão de que a maneira como implantado o subsídio pela Administração Federal é inconstitucional.

Além das inconstitucionalidades mencionadas acima, ao implementar o subsídio como parcela única, o trato dado àqueles servidores que, além de rubricas incorporadas por decisão judicial transitada em julgado, percebiam verbas de natureza pessoal, a exemplo de anuênios, quintos, que, por serem pessoais, os diferenciariam de outros, beira ao “estelionato legal”.

Explica-se: ao mesmo tempo em que se garante o pagamento do que seriam as parcelas de natureza pessoal numa rubrica denominada “parcela complementar de subsídio, de natureza provisória”, ao servidor, enquanto existente tal rubrica, são vedados quaisquer outros acréscimos no subsídio, mesmo que resultante de movimentação na carreira, reajustes, etc.

É dizer: se o servidor recebia X (como remuneração do cargo) e Y (como vantagem pessoal), enquanto permanecer qualquer percentual de Y, sua remuneração total ficará “congelada”, mesmo que a seus pares seja concedido aumento, na medida em que as normas determinam a absorção do Y por ocasião de qualquer reajuste ou alteração do X. É injusto. É anti-isonômico (art. 5o da CF).

Nessa esteira, aliás, restou indiferente à orientação da Suprema Corte, de que não se pode suprimir vantagem pessoal, mesmo no caso de excesso ao teto, do que é exemplo o RE 215612/SP, que traz precedentes nos RE 312.026, DJ 14.12.2001; RE AgRE 255.068, DJ 1.6.2001 e RE AgR 332.360, DJ 15.4.2005, verbis:

“EMENTA: ADMINISTRATIVO. PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO. LEI Nº 10.430, DE 29 DE FEVEREIRO DE 1988, ART. 42. TETO REMUNERATÓRIO. GRATIFICAÇÃO DE GABINETE, ADICIONAL DE FUNÇÃO E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PRECEDENTES.
O plenário deste Tribunal decidiu no sentido de que deverão ser excluídas do cálculo do teto previsto no art. 37, XI, da CF, as vantagens pessoais, como tais, entretanto, consideradas apenas as decorrentes de situação funcional própria do servidor e as que representem uma situação individual ligada à natureza ou às codições de seu trabalho. – Recurso conhecido e provido.
(RE 215612/SP – São Paulo, STF, 2a Turma, Relator p/acórdão Min. Nelson Jobim, in DJ 23.06.2006)

Portanto, em todos os sentidos acima mencionados, restaram evidenciadas as inconstitucionalidades cometidas a direitos de servidores públicos, provenientes de uma conjuntura política no Congresso Nacional cooptada por uma lógica governamental do dia, com o mais completo descaso ao ordenamento jurídico vigente, como se demonstrou, inclusive, pela denúncia formulada pelo Dep. Mauro Lopes (que, como ele mesmo relata, compõe a base política do governo), relator da matéria constante na MP 305/2006, convertida na Lei nº 11.358/2009, o que vulnera o cidadão, restando ao Poder Judiciário a reconstrução da solidez de um sistema jurídico/constitucional que se mostre minimamente respeitável.

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