CNASP promove seminário sobre Contas Públicas, Políticas Sociais e Serviço Público

O Coletivo Nacional de Advogados(as) de Servidores(as) Públicos(as) – CNASP realizou, no dia 10 de outubro, o Seminário “Contas Públicas, Políticas Sociais e Serviço Público. O evento foi realizado no auditório da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB, em Brasília, e contou também com transmissão ao vivo pelo YouTube (assista aqui).

A primeira mesa do Seminário acendeu um alerta sobre a verdadeira finalidade das políticas de ajuste fiscal e das reformas estatais no Brasil e na América Latina. Sob a mediação de João Luiz Arzeno da Silva, advogado do escritório membro Trindade & Arzeno Advogados Associados, o debate teve como painelistas Ramiro Chimuris, Doutor em Direito e em Ciências Sociais pela Universidad de la República (UdelaR/Uruguai) e Professor universitário, e Deise Martins, Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo, integrante do Grupo de Pesquisa CNPq Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo.

Deise e Ramiro confrontaram a narrativa oficial de “déficit” e “modernização”. Os palestrantes defenderam que as finanças públicas e a Seguridade Social são, na verdade, instrumentos ideológicos que, sob a aparência de tecnicidade, buscam desmontar direitos sociais, priorizar o pagamento da dívida e submeter o Estado aos interesses do capital financeiro.

 

O domínio da dívida e o “neocolonialismo jurídico”

Ramiro Jacinto Chimuris Sosa, presidente da Rede Internacional de Cátedras, Instituições e Personalidades sobre o Estudo da Dívida Pública (RICDP) levantou um debate crucial sobre a verdadeira motivação por trás das reformas estatais e dos ajustes fiscais que têm varrido a América Latina, a Europa e os EUA. Jacinto defendeu que, sob a roupagem de temas “áridos e complexos” como as reformas da Previdência e, no caso do Brasil hoje, a Reforma Administrativa, o que se esconde é, na verdade, um desmonte de direitos e a submissão dos Estados ao poder financeiro global.

Em sua fala, ainda ressaltou a importância da precisão jurídica, mas alertou que, por trás das palavras, estão as ideologias e que é necessário entendê-las. O jurista traçou um paralelo entre diversos países para demonstrar como o capital financeiro tem agido para controlar Estados e políticas públicas. Citando o filme “Agente Internacional”, ele afirmou que o mecanismo da dívida pública vem sendo utilizado para exercer o domínio sobre os países e moldar as políticas de acordo com o que os mercados desejam.

Ainda destacou a crise europeia como um exemplo claro: na Espanha, após a crise de 2008, a Constituição foi alterada “a portas fechadas, em menos de três horas” para tornar o pagamento da dívida uma “prioridade absoluta” (Artigo 135), um movimento que se repetiu de forma parecida em Portugal, Itália e Alemanha.

Questionando o propósito de tantos ajustes fiscais, ele argumentou que o resultado é sempre o mesmo: “pobres contra pobres, trabalhadores contra trabalhadores, menos saúde, menos educação”. Ele apresentou dados alarmantes, indicando que, enquanto apenas cerca de 15% dos orçamentos na América Latina são dedicados a políticas sociais, entre 40% e 45% são absorvidos pela dívida pública.

 

Ajustes fiscais e a narrativa da falta de recursos

O professor afirma que a narrativa dominante é sempre a mesma: “não há dinheiro, não há recursos”. Essa justificativa é usada para congelar gastos primários e direitos, mas nunca o pagamento da dívida. O jurista classificou essa dinâmica como um “neocolonialismo jurídico”, onde o comportamento das instituições financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), replica o controle colonial, mesmo que os países já não sejam formalmente colônias.

Ele concluiu sua análise com uma crítica à linguagem da “modernização” usada para justificar as reformas, citando uma fábula de Eduardo Galeano: um cozinheiro convocou uma reunião com os animais perguntando com que molho queriam ser servidos. Quando um dos animais disse que não queria ser servido acabou a reunião.

 

O direito como instrumento e a falácia do déficit das contas públicas

A Conselheira suplente representante dos trabalhadores no Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS) e professora Deise Martins fez uma análise profunda sobre a relação entre o direito, as finanças públicas e o capitalismo. Segundo ela, o debate sobre a Seguridade Social não pode se restringir às minúcias da lei, mas deve ser compreendido à luz das contradições do Estado capitalista.

Sua perspectiva busca desnaturalizar a gestão das contas públicas, alertando que o orçamento não é uma planilha neutra nem os direitos são meras “bondades estatais”. Pelo contrário, a forma como o Estado e a Seguridade Social são geridos expressa os interesses a que o Estado serve.

 

A máscara da igualdade e a ocultação da classe

Martins defendeu que o direito não é um instrumento neutro. No modo de produção capitalista, ele tem a função primordial de regular a compra e venda da força de trabalho, dando sustentação ao sistema através da forma jurídica contratual.

Ao analisar a Constituição federal de 1988, que estabelece a previdência como direito de todos e dever do Estado, a professora fez uma crítica a categoria do sujeito de direitos. Para ela, essa forma jurídica visa “igualar sujeitos radicalmente desiguais”, como o desempregado e o rentista. Essa igualdade formal, no entanto, mascara a desigualdade e a luta de classes, fazendo com que as regras do jogo capitalista sejam aceitas sem questionamento.

Ela enfatizou que a Seguridade Social, embora seja uma conquista histórica dos trabalhadores, também funciona como um aparelho ideológico do Estado, que legitima a ordem capitalista ao lhe dar um “tom de capitalismo humanizado“. O sistema, que precisa da reposição da força de trabalho, opera para minimizar os custos sociais, e é nesse contexto que as contas públicas são apresentadas como meros “dados técnicos”, ofuscando a possibilidade de ação e debate político sobre o tema.

 

O “déficit” ocultado pela DRU e isenções fiscais

Um dos pontos centrais da fala de Deise Martins foi a falácia do déficit da Previdência. Ela argumentou que esse debate, presente desde os anos 90, oculta retiradas sistemáticas de recursos destinados a esse fim.

A professora destacou a Desvinculação de Receitas da União (DRU), instituída em 1994, que permite ao governo federal remanejar 30% do orçamento da Seguridade – bilhões de reais anuais – para outras finalidades, incluindo o abatimento da dívida pública. Além disso, citou as isenções fiscais, que somam de 15 a 20 bilhões de reais por ano e não são contabilizadas como gasto.

“Como algo deficitário pode conviver com retiradas sistemáticas de recursos?“, questionou, denunciando que a amortização da dívida pública consome todos os anos um montante superior ao orçamento da Saúde e da Previdência juntos, e isso é apresentado à sociedade como uma mera tecnicidade.

Para a professora, a chamada modernização da previdência tem significado a tentativa de transformação do Estado em uma empresa, com o sucateamento do serviço público para abrir caminho à iniciativa privada e ao sistema financeiro. Ela citou o exemplo do Chile, que implementou um sistema previdenciário capitalizado, e hoje, diante da situação famélica dos aposentados, precisou resgatar a assistência estatal para atender o mínimo – um aviso sobre os riscos das reformas atuais na América Latina.

A lógica final é de mão dupla: de um lado, precarizam-se as relações de trabalho (terceirização, informalidade) para transformar trabalhadores em contribuintes individuais e, de outro, abre-se espaço para que o sistema financeiro utilize esse dinheiro para suas operações de capital fictício, transformando o sujeito de direitos em um investidor exclusivamente responsável pelo desempenho de sua própria aposentadoria.

Texto: Renata Vilela/LBS Advogados e Advogadas
Fotos: Renata Vilela/LBS Advogados e Advogadas e CNASP/Divulgação

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