Luís Fernando Silva [1]
1. Introdução
Com a posse do Presidente Lula, em janeiro de 2023, foi novamente instalada a estrutura da Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP), composta não só pela própria MNNP [2] (onde foi celebrado o acordo de 2023, de concessão de reajuste emergencial de 9%), mas também por mesas específicas (ou setoriais), algumas delas já tendo resultado em acordos voltados à reestruturação de algumas carreiras (como foram os casos da FUNAI e CONAB, dentre outros), enquanto outras encontram-se em fase de instalação ou de negociação com vistas à celebração de eventuais acordos futuros.
Com isso é possível dizer que apesar de termos a convicção de que o tema “diretrizes gerais de carreira” deveria constituir atribuição da MNNP, haja vista sua natureza genérica, de efeitos espraiados sobre toda a Administração Pública, a realidade tem nos mostrado que o Governo Federal – algumas vezes instado pelas próprias organizações sindicais -, vem adotando algumas medidas que parecem apontar na direção da construção dessas diretrizes na prática, seja a partir de características que tornou presentes nas reestruturações de carreira já definidas em acordos específicos; seja na fixação de regras que balizam o chamado “ENEM dos concursos” (tema ao qual nos dedicaremos mais à frente); seja ainda através de manifestações públicas de autoridades responsáveis pela área.
Demais disso, importa considerar ainda que a partir de iniciativa do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), há alguns meses foi instalada a Câmara Técnica de Transformação do Estado (CTTE) [3], da qual faço parte, e que para o desenvolvimento do seu trabalho resolveu instituir “Subgrupos”, dentre os quais um com a responsabilidade precípua de debater e formular propostas sobre “Carreiras, desempenho e remuneração”.
Queremos crer, portanto, que o Governo Federal vem atuando em 2 (duas) frentes: a) uma mais dinâmica, através da qual vai negociando novas estruturas de carreira, e com elas definindo e fixando “conceitos” e “diretrizes” que a rigor deveriam ser objeto de uma discussão mais ampla (e também mais democrática), e b) outra mais teórica, por meio da qual talvez se opere a efetiva discussão sobre “diretrizes gerais de carreira” e “conceitos” indispensáveis à construção dessas estruturas, mais uma vez restrita a um universo pequeno de pessoas e representações.
Some-se a isso as recentes manifestações de autoridades públicas afirmando que o Governo pretende deixar para trás a ideia de fazer revisões salariais gerais – aplicáveis a todas as categorias num só percentual -, para apostar na concessão de revisões específicas, destinadas mais especialmente a categorias que acumularam maiores perdas salariais nos últimos anos, o que nos remete uma vez mais à reestruturação de carreiras como meio de concessão dessas revisões, eis que permite majorar tabelas salariais específicas sem risco jurídico de extensão aos demais servidores federais.
Em suma, a impressão geral é de que temos, de um lado, um grave distanciamento desse debate, por parte das entidades sindicais representativas dos servidores, ocasionado ora pela falta de um espaço político interpartes, adequadamente organizado para esse fim, ora em razão do insubsistente preparo técnico (e por que não dizer também político) de alguns dirigentes sindicais para opinar e convencer sobre um tema tão complexo, enquanto do outro lado verificamos um movimento governamental que vai consolidando “conceitos” e “diretrizes”, sem que para isso haja sido assegurado um (prévio) debate, amplo e democrático, sobre uma questão tão relevante para os servidores e para a população que depende de serviços públicos de qualidade.
O que se pretende com o presente estudo, dessa forma, é resgatar algumas “diretrizes gerais de carreira” que resultaram de um esforço teórico conjunto, empreendido há mais de 14 (quatorze) anos por entidades como a FENASPS [4], a CONDSEF [5] e a CNTSS [6], e que logrou chegar a apresentação de uma proposta de Projeto de Lei dispondo sobre “as diretrizes gerais a serem observadas quando da estruturação ou reestruturação de carreiras, cargos e salários dos servidores públicos federais vinculados à Administração Pública federal direta, suas autarquias, inclusive as em regime especial, fundações públicas e agências reguladoras, e dá outras providências”.
Busca-se, assim, recolocar no centro do debate atual alguns postulados que infelizmente foram sendo desprezados com o passar do tempo, de sorte a permitir que a discussão sobre carreira no serviço público se amplie e contagie as partes envolvidas.
2. O que é carreira:
Numa linguagem simples podemos dizer que a expressão “carreira” serve para designar, principalmente, a possibilidade de evolução do servidor público durante sua vida laboral, ou seja, ela encerra um conjunto de normas, requisitos e critérios que permitem visualizar essa evolução dentro de uma tabela composta normalmente por classes e padrões (ou matriz matemática composta de variados espaços de crescimento funcional), e que são aplicáveis a um conjunto de cargos de idêntica natureza.
Dentre esses critérios e requisitos normalmente estão o tempo de serviço (que costuma traduzir um experiência acumulada, que se reverte em melhor trabalho); o esforço do servidor em sua qualificação, seja ela mediante escolaridade formal ou realização de cursos de capacitação (que normalmente traduzem a aquisição de maior capacidade para o exercício das atribuições do cargo); as avaliações de desempenho, em particular quando voltadas ao cumprimento de metas institucionais; e a vinculação da carreira ao planejamento estratégico e ao desenvolvimento organizacional das instituições respectivas.
3. A reestruturação de carreiras beneficia só os servidores em atividade, ou também os aposentados e pensionistas?
Depende. Em relação aos servidores que lograram aposentadoria, ou deixaram pensão, segundo regras previdenciárias (permanentes ou de transição) que lhes asseguravam o direito à paridade com os servidores em atividade [7], não há dúvidas de que a Carta da República impõe a extensão, a eles, das mesmas vantagens deferidas aos servidores em atividade. O mesmo já não ocorre com os servidores que lograram a aposentadoria, ou deixaram pensão, segundo regras previdenciárias (permanentes ou transição) que previam revisão anual na mesma data e índices aplicados aos benefícios do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, visto que optaram por regra que não continha o direito à paridade com os servidores em atividade.
4. Que diretrizes gerais as entidades representativas de servidores federais defendem?
Conforme já foi dito antes, há cerca de 14 (quatorze) anos algumas entidades nacionais representativas de servidores federais chegaram a um entendimento sobre quais deveriam ser as “diretrizes gerais de carreira”, a serem observadas quando das reestruturações desses instrumentos. Vejamos quais seriam as principais diretrizes:
a) A carreira deve pôr ênfase no trabalho coletivo dos serviços públicos prestados à população, e não supervalorizar o trabalho individual, como hoje ocorre;
b) Deve assegurar a perspectiva de evolução funcional, mediante um crescimento horizontal (com a passagem de um padrão ou referência para outra), em decorrência do tempo de serviço, que deve ser visto como elemento que traduz a experiência acumulada pelo servidor ao longo da sua vida funcional; e ainda de um crescimento vertical (com a passagem de uma classe para a outra), resultante do esforço do servidor na sua qualificação e das notas obtidas em avaliação de desempenho, essa ultima focada na melhoria dos serviços prestados à população, cuja análise deve levar em conta a prévia oferta (pela administração) de condições adequadas de trabalho, bem assim a realidade socioeconômica da região onde o serviço é prestado, já que esses fatores podem influir decisivamente na prestação qualificada das políticas públicas desenvolvidas;
c) Deve adotar mecanismos de incentivo à qualificação profissional e à educação formal, assegurando a incidência dessas condições sobre a evolução vertical e/ou a percepção de retribuição por titulação ou qualificação;
d) Deve garantir a oferta contínua de oportunidades de qualificação e educação formal, bem assim a universalização dessas oportunidades;
e) Deve assegurar a equidade entre antigos e novos servidores, bem como respeitar a garantia de paridade entre ativos, aposentados e pensionistas, nos casos por ela alcançados;
f) Deve estabelecer uma relação justa entre as maiores e menores remunerações, fixando um intervalo máximo de 6 (seis) vezes;
g) A jornada de trabalho deve ser compatível com o tipo de serviço público prestado à população e à necessidade de funcionamento do órgão ou entidade em período maior que 8 (oito) horas diárias, mediante flexibilização para turnos ininterruptos de 6 (seis) horas diárias;
h) Na adoção da modalidade de trabalho remoto deve observar as atribuições do cargo e o tipo de serviço público desempenhado pelo órgão ou entidade, de modo a assegurar o trabalho presencial sobretudo quando envolver população de baixa renda e/ou escolaridade, com dificuldade de acesso a meios remotos de relação com o Estado;
i) Deve valorizar o vencimento-básico, com a incorporação das demais parcelas remuneratórias hoje existentes;
j) Deve promover a racionalização de cargos, com a aglutinação de cargos de atribuições semelhantes e mesma exigência de escolaridade para o ingresso;
k) Deve assegurar a interpenetração entre as remunerações dos diversos níveis de escolaridade, de modo que servidores de escolaridade inferior, mas localizados no final da sua tabela, tenham remunerações iguais ou até superiores a servidores do nível de escolaridade superior, mas recém- ingressados no serviço público;
l) Deve prever o enquadramento de antigos e novos servidores na mesma estrutura, evitando-se (e extinguindo) os “planos especiais” hoje existentes;
5. Que diretrizes gerais é possível dizer que o Governo vem adotando em recentes reestruturações de carreira e no concurso público anunciado?
O chamado “ENEM dos concursos” traz uma importante característica, qual seja a “transversalidade” dos cargos para os quais há vagas previstas no edital. Dessa característica resulta que esses cargos poderão ser lotados em diferentes setores, órgãos ou entidades da administração pública, seja por ocasião do ingresso original ou mais à frente, no decorrer da vida funcional.
Aqui cumpre lembrar que a “transversalidade” não é exatamente uma característica nova, eis que já marcava boa parte dos cargos públicos federais à época do extinto DASP [8], como podemos citar o exemplo do “Agente Administrativo”, cargo de escolaridade média responsável por atividades administrativas existentes em inúmeros órgãos ou entidades da administração.
Ocorre que com o passar dos anos esses cargos, inicialmente “transversais” foram dando lugar (ou foram sendo transformados) em cargos específicos, muitas vezes adotando a denominação da atividade finalística do órgão ou entidade de cujo quadro de pessoal faziam parte, como vimos ocorrer com os atuais cargos de Técnico do Seguro Social, Especialista em Regulação de Saúde Suplementar, Técnico em Saúde Pública da FIOCRUZ, para ficarmos em poucos exemplos.
Com efeito, conquanto seja de reconhecer que algumas dessas especificidades sejam perfeitamente justificáveis – sobretudo quando relacionadas à exigência de alguma capacitação superior à mera escolaridade do cargo [9] -, também é preciso reconhecer que outras transformações tiveram o tão só objetivo (ainda que nobre) de alcançar melhores remunerações, enquanto a atividade exercida permaneceu sendo genérica.
Assim é que a retomada da “transversalidade”, marca do “ENEM dos concursos”, parece indicar a adoção de uma “diretriz geral de carreira”, que o Governo deve fazer uso não só para futuros ingressos, como provavelmente para usar como critério definidor das reestruturações de determinadas carreiras ou cargos atuais, como vimos ocorrer com a Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais [10].
Demais disso, extraem-se de algumas recentes reestruturações de carreira a preocupação governamental em incentivar a fixação de servidores em determinados locais, inóspitos ou de difícil provimento, mediante a instituição de uma gratificação de lotação, ideia que pode ser utilizada também para regiões de fronteira ou para o exercício de determinadas atividades, tidas como especiais [11].
Também vem se consolidando, a nosso ver, a idéia de que para superar o obstáculo decorrente da proibição constitucional de realização de ascensão funcional, a administração pública precisa remunerar o esforço dos seus servidores na aquisição de educação formal superior à exigida para o ingresso, bem assim o esforço por eles feito na aquisição de maior capacitação para o desempenho das atribuições do cargo, seja mediante a instituição de tabelas com diferentes classes de capacitação, seja através da instituição de gratificações de qualificação.
Igualmente é possível dizer que o Governo vem caminhando na direção da racionalização das centenas de cargos públicos hoje existentes, de modo a reduzir expressivamente esse número a aglutinar diversos desses cargos em torno de novos cargos, de atribuições iguais ou assemelhadas, como se deu recentemente com os cargos de Indigenista Especializado e de Agente de Indigenismo, que foram transformados nos cargos de Especialista em Indigenismo e de Técnico em Indigenismo [12].
Persiste entretanto – a nosso ver um grave equívoco -, a política governamental de promover a existência de estruturas funcionais paralelas, dentro do mesmo órgão ou entidade, como temos no PECFAZ, na ANVISA e agora no PECFUNAI, que englobará cargos de nível superior, intermediário e auxiliar, e que assim conviverão com os cargos de nível superior e intermediário, vinculados à Carreira Indigenista.
Cumpre, assim, reivindicar do Governo Federal a imediata instalação de um espaço de discussão técnica e política acerca das chamadas “diretrizes gerais de carreira”, bem assim que imponha às negociações voltadas à constituição ou transformação de carreiras, que essas assegurem em suas respectivas leis de regência a necessária adequação dos seus conteúdos às “diretrizes gerais”, quando essas últimas foram aprovadas.
6. Reajuste geral de remuneração x revisões específicas. O que fazer?
Sem dúvidas o ideal seria que tivéssemos uma política salarial unificada, capaz de manter o poder aquisitivo das remunerações e proventos e promover, paralelamente, alguma forma de ganho real de salário.
Entretanto, temos que a aprovação do “Arcabouço fiscal”, vis a vis a escassez de recursos orçamentários destinados às despesas com pessoal (de resto uma decisão política), ladeadas pelas enormes diferenças remuneratórias hoje verificadas no âmbito federal, e por perdas inflacionárias bastante diversas entre as categorias, certamente conduzem à conclusão de que é preciso que se adote uma política emergencial de recuperação remuneratória em favor dos cargos que estão em pior situação salarial, como são os casos daqueles englobados no Plano Geral de Cargos do Poder Executivo – PGPE, na Carreira da Previdência, da Saúde e do Trabalho, da Carreira da Seguridade Social e do Trabalho, do Plano de Carreira dos Cargos de Reforma e Desenvolvimento Agrário, do Plano de Classificação de Cargos – PCC, dentre outros.
Para que isso ocorra, contudo, é preciso reconhecer que voltamos ao mecanismo de “reestruturação de carreiras” como um autêntico “biombo”, a esconder o que de fato se está a fazer, ou seja, uma concessão salarial específica.
Cumpre assim, a nosso ver, que essas negociações específicas possam ir além, para também agasalhar as “diretrizes gerais de carreira” abordadas anteriormente, caminhando lado a lado com concessões salariais com as resultantes incorporação, aos respectivos vencimentos-básicos, de verbas como a Gratificação de Atividade Executiva – GAE, e ao menos parte dos valores hoje adimplidos a título de gratificações de desempenho.
Em suma, somos do entendimento de que é correta a adoção de uma política de revisão salarial emergencial e específica, capaz de elevar mais rapidamente as menores remunerações, e com isso recuperar as elevadas perdas inflacionárias que assolaram essas categorias nos últimos anos, conforme restou demonstrado no Estudo Técnico nº 344 [13], produzido pelo DIEESE para o FONASEFE [14], com vistas à negociação salarial do ano em curso.
Luís Fernando Silva – OAB/SC 9582 – SLPG Advogados e Advogadas
[1] Advogado integrante do escritório SLPG Advogados e Advogadas;
[2] À MNNP compete discutir e negociar grandes temas gerais de interesse do conjunto dos servidores federais e do Governo, tais como política salarial recomposição geral de perdas inflacionárias, diretrizes gerais de carreira, realização de concursos públicos, etc;
[3] Vinculada à Secretaria Extraordinária para a Transformação do Estado.
[4] Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social;
[5] Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal;
[6] Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social;
[7] Como é o caso da original redação do art. 40, da CF; dos artigos 3º e 8º, da EC nº 20, de 1998; dos artigos 3º e 6º, da EC 41, de 2003; do art. 3º, da EC nº 47, de 2005; e dos artigos 3º, 4º, § 6º, I, e 20, § 2º, I, da EC 103, de 2019;
[8] Sigla do antigo Departamento de Administração do setor Público, órgão vinculado ao Governo Federal;
[9] Como podemos citar como exemplo os cargos de Especialista em Indigenismo e de Técnico em Indigenismo (vide MP nº 1203/2023);
[10] Art. 37, da MP nº 1203/2023, que altera o art. 2º, § 1º, da Lei nº 12094, de 2009;
[11] Vide art. 15, da MP nº 1203/20023, que altera o art. 109-A, da Lei nº 11.907, de 2009;
[12] Vide MP nº 1203/2023;
[13] Disponível em: https://fasubra.org.br/geral/estudo-tecnico-344/. Acesso em: 11/03/2024;
[14] Em 19 de janeiro de 2024;