Acesso à justiça e à cidadania: considerações sobre Justiça do Trabalho, princípios de direito laboral e imaginário popular

Autor do Artigo: Ana LUÍSA de SOUZA Correia de Melo Palmisciano

INTRODUÇÃO

O presente ensaio pretende discorrer sobre a relação entre a atuação institucional e o processo de reconhecimento e efetivação de direitos no País, com enfoque na temática do acesso à Justiça do Trabalho e seus princípios. Serão utilizados alguns dados de pesquisas sobre acesso ao Judiciário e conhecimento de direitos por camadas populares, para então relacionar tais elementos aos princípios materiais e processuais inspiradores dos direitos trabalhistas.

A discussão teórica sobre a cidadania e os mecanismos responsáveis pela efetivação dos direitos é temática atual e fundamental. Se, por um lado, a Constituição de 1988 restaurou os direitos políticos, promoveu os direitos sociais e consagrou direitos civis elementares, ainda existe grande distância entre essa cidadania formal e a efetivação de uma cidadania substancial.

Existem duas teorias explicativas dessa realidade, quais sejam, a teoria da path dependence (ou dependência da trajetória) e a teoria institucional. A teoria da path dependence sustenta que as especificidades históricas de um país favorecem a existência de um vácuo entre direitos assegurados formalmente e a concretização de tais direitos. Já a teoria institucional sustenta a importância da via institucional e de seu impacto no processo de formação e consolidação da cidadania de um país.

Embora não se possa deixar de considerar a influência de nosso legado histórico, o presente artigo filia-se à corrente que acredita que a atuação institucional também é fator fundamental para a efetivação e consolidação da cidadania no País, e será desenvolvido com base nessa perspectiva.

 

REFLEXÕES SOBRE CIDADANIA E ACESSO À JUSTIÇA

A discussão sobre o acesso à justiça perpassa pelos obstáculos ao acesso ao Poder Judiciário, do qual grande parte da população brasileira está excluí- da, principalmente as camadas mais pobres.

Classificados em tipos, esses obstáculos podem ser de ordem econômica, social e cultural. Sabe-se que a resolução formal de litígios nos tribunais é muito dispendiosa: os litigantes precisam arcar com a maior parte dos custos necessários à solução de uma lide, incluindo honorários advocatícios e custas judiciais.

A Justiça Civil é cara para os cidadãos em geral e mais ainda para os economicamente mais débeis, já que são estes, sobretudo, os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor, nas quais a justiça é proporcional- mente mais cara 1.

Todavia, para além dos obstáculos supracitados, o presente ensaio será focado nas barreiras sociais e culturais, que, afetando o acesso das camadas menos favorecidas à justiça, não se esgotam na dimensão econômica. Os cidadãos com menos recursos tendem a conhecer pior seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer como jurídico um problema que os afete. Além disso, mesmo que reconheçam esse problema como violação a um direito, é necessário que essas pessoas se disponham a ajuizar uma ação judicial. Estudos sobre acesso à justiça demonstram que existe grande diferença entre os serviços advocatícios prestados às classes mais abastadas e os dirigidos às classes com menos recursos. Existe, também, um temor geral de represálias por se recorrer aos tribunais 2.

Esse obstáculo insere-se no que se chama de “possibilidade das partes”. As pessoas com recursos financeiros consideráveis têm vantagens óbvias ao proporem ou defenderem demandas. Trata-se de “capacidade jurídica” pessoal (aptidão para reconhecer um direito ou propor uma ação ou sua defesa) e se relaciona com as vantagens financeiras e diferenças de educação, meio e status social. Nesse enfoque insere-se a questão de reconhecer a existência de um direito, juridicamente exigível, que, como visto, é especialmente séria para os despossuídos. 3

Sem que se conheça o direito, portanto, não há como ingressar no Poder Judiciário. E, sem ingressar no Judiciário, muitos direitos lesados não podem ser efetivados. O desconhecimento dos direitos é, assim, um obstáculo de peso ao acesso à justiça, bem como mais um empecilho para a consolidação da cidadania no País, que não se esgota na dimensão econômica. Se a cidadania implica o reconhecimento de todos como sujeitos de direitos e deveres, não ter noção dos direitos formalmente assegurados diminui as possibilidades de vê-los realizados mediante, por exemplo, a atuação do Poder Judiciário. Por outro lado, como ensinam as lições do professor Boaventura de Souza Santos, além de conhecerem seus direitos, é fundamental que os cidadãos acreditem na possibilidade de efetivá-los pelo acionamento das instituições competentes. De acordo com esse raciocínio, procede a reflexão sobre a atuação de instituições responsáveis por consagrar direitos formalmente reconhecidos, que, portanto, também trilham um caminho afim da cidadania.

A tese sustentada é que as instituições, se devidamente acionadas, podem transformar o real, viabilizando a construção de uma cidadania efetiva. Por sua vez, se conhecem seus direitos, os cidadãos atuam. A temática também passa pela discussão da chamada “educação para a cidadania”, prática institucional voltada para mudanças de concepções, de noções dos direitos e de valores políticos, que é pouco abordada pela literatura.

Há duas formas de intervenção direta que afetam a cultura dos direitos. A primeira deriva da própria prática institucional e política: na vida política cotidiana, padrões interativos envolvendo o Estado e atores diversos reforçam ou alteram o imaginário político, mesmo que os agentes estatais nem sempre tenham consciência do impacto de suas ações sobre essas imagens. Se os cidadãos acreditarem que sua ação política pode alterar sua vida, mais do que considerarem esse investimento irrelevante, então tenderão a acionar mais freqüentemente os canais competentes para efetivar seus direitos. A segunda forma de intervenção que afeta a cultura dos direitos decorre de ações deliberadas voltadas para moldar a cultura política: nesse campo inserem-se as políticas orientadas para alterar a maneira como a população concebe sua relação com o poder público, introduzindo as noções de direitos e deveres políticos e atuando no campo da educação cívica 4.

O presente trabalho abordará a primeira forma de intervenção institucional citada, com ênfase na atuação do Judiciário Trabalhista.

Para tanto, será necessário analisar alguns dados sobre o conhecimento de direitos e o acionamento da justiça por camadas carentes da população, o que será feito a seguir.

 

ACESSO À JUSTIÇA DO TRABALHO E IMAGINÁRIO POPULAR NO RIO DE JANEIRO 5

Para trabalhar o tema ora proposto, beneficiaremo-nos dos resultados da importante pesquisa realizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro pelo CPDOC-FGV e pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), denominada “Lei, justiça e cidadania”, voltada para desvendar as percepções dos direitos por algumas camadas populares, para então relacioná-las aos fundamentos e sentidos próprios ao processo do trabalho.

A pesquisa “Lei, justiça e cidadania” 6 consistiu na realização de entre- vistas com mais de 1.500 pessoas com o objetivo de conhecer as visões e os graus de conhecimento da população sobre os direitos e seus mecanismos institucionais de defesa, além de dimensionar sua participação política e social. Um dos pontos que mais chama a atenção em seus resultados é o desconhecimento da população a respeito de seus direitos e deveres. Solicitada, por exemplo, a citar três direitos dos brasileiros, a maioria da população analisada não foi capaz de fazê-lo. Outro aspecto importante a ser destacado foi a hierarquia atribuída aos direitos: os mais mencionados foram os sociais (25,8%); em seguida, os civis (11,7%), e finalmente os políticos (apenas 1,6%). Enquadradas como direitos sociais, a maioria mencionou questões relacionadas com o trabalho, o salário e o emprego. No que tange aos direitos políticos, a concentração das respostas girou em torno do voto. Os direitos civis foram os menos citados. 7 A Tabela 1 apresenta os dados mencionados.

 

Tabela 1: Percepção e tipos de direitos

Direitos %
Civis 11,7
Políticos 1,6
Sociais 25,8
Outros 4,2
NS/NR 56,7
Total 100,0

N = 4.733

Obs.: Neste caso, como a pergunta pedia para citar três dos mais importantes direitos dos brasileiros, os números da tabela correspondem à soma das três respostas.

Fonte: CPDOC-FVG / Iser (“Lei, justiça e cidadania”).

 

A pesquisa demonstrou que a parcela analisada cita, na maioria das vezes, apenas direitos de ordem social. No imaginário do povo, os “direitos” costumam ser relacionados ao conjunto dos benefícios garantidos pelas leis trabalhistas e previdenciárias implantadas na era Vargas 8.

Para o nosso estudo, também é importante destacar os graus de confiança que a população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro expressa em relação ao Poder Judiciário. Enquanto a confiança na Justiça do Trabalho varia de média a alta, na Justiça Comum ela oscila entre média e baixa. O contato com o Poder Judiciário, no entanto, tende a reforçar esses resultados. De modo geral, a Justiça do Trabalho é vista de forma mais positiva por aqueles que a ela já recorreram, ao passo que com a Justiça Comum ocorre o contrário: a tendência dos cidadãos foi a de lhe atribuir graus ainda mais baixos de confiabilidade após uma primeira experiência nesse Judiciário 9, conforme demonstra a Tabela 2.

 

Tabela 2: Graus de confiança (%) atribuídos à justiça pela população em geral e pela parcela que a ela já recorreu

Justiça do Trabalho Geral Já recorreu
1 a 4 19,2 20,6
5 a 7 37,5 30,9
8 a 10 43,3 48,5
Total 100,0 100,0
Justiça Comum* Geral Já recorreu
1 a 4 35,5 52,7
5 a 7 44,0 37,8
8 a 10 20,5 9,5
Total 100,0 100,0

Obs.: A numeração da 1ª coluna refere-se às notas. Refere-se apenas à Justiça Civil.

Fonte: CPDOC-FVG / Iser (“Lei, justiça e cidadania”).

 

No caso específico da Justiça do Trabalho, embora seus níveis de confiança sejam médios e altos, 43,9% dos entrevistados consideram que os em- pregados são tratados com mais rigor, contra 24,4% que entendem que os patrões são os mais desfavorecidos e 22,1% que avaliam que o tratamento nesse setor é igualitário 10 (Tabela 3):

 

Tabela 3: Se um patrão e um empregado recorrem à Justiça do Trabalho, ela tratará (%)

Geral Já recorreu a ela
O empregado com mais rigor 43,9 34,4
O patrão com mais rigor 24,4 31,2
Os dois igualmente 22,1 25,9
NS/NR 9,6 8,5
Total 100,0

N = 1.578

100,0

N = 210

Fonte: CPDOC-FVG / Iser (“Lei, justiça e cidadania”).

 

Todavia, os dados também demonstraram que esse tipo de compreensão tende a diminuir após o contato com essa Justiça Especializada: após recorrer ao Judiciário Trabalhista, 34,4% da população analisada continuou a acreditar que o empregado é tratado com mais rigor, enquanto 31,2% demonstrou entender que o patrão enfrenta mais rigor, ou seja, o contato com a Justiça do Trabalho tende a reduzir visivelmente a compreensão de que esse setor do Judiciário trata as partes desigualmente 11.

Os dados mostram que está enraizada no imaginário da população a primazia pelos direitos sociais e certo descaso pelos direitos civis e políticos. Por outro lado, indicam que a população analisada tende a não reconhecer as instituições oficialmente encarregadas de garantir os direitos como instrumentos capazes de efetivá-los 12, com exceção do Judiciário Trabalhista, que, como visto, é encarado com mais confiança, principalmente após o cidadão ter sido por ele atendido.

É importante relacionarmos esses dados aos princípios inspiradores do direito e do processo do trabalho. Vamos refletir, portanto, sobre a possibilidade de a lógica do direito material e processual trabalhista estar influenciando o maior acionamento do Judiciário Trabalhista (em comparação à Justiça Estadual Comum), o que se reforça após o primeiro contato com esta Justiça Especializada.

 

PRINCIPIOLOGIA DO DIREITO/PROCESSO DO TRABALHO E ACESSO À JUSTIÇA

O Direito do Trabalho é constituído por um núcleo central de normas de ordem pública criadas para proteger o trabalhador diante da sabida desigualdade socioeconômica existente entre este e o empregador. Ou seja, todo seu conjunto protetivo de normas, com suas matrizes lançadas no Art. 7° da Constituição Federal de 1988, insere-se num contexto de reconhecimento da responsabilidade social do Estado na contemporaneidade, para além das concepções liberais.

As Constituições elaboradas após o final da 1ª Guerra Mundial incorporam em seus textos os chamados direitos sociais. Como salienta Bercovici 13, estes seriam direitos de prestação relacionados ao princípio da igualdade material e dependeriam de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem usufruídos pelos cidadãos. Assim, as concepções sociais ou socializantes bem como a determinação de princípios constitucionais para a intervenção estatal nos domínios social e econômico seriam consideradas fundamento do novo “constitucionalismo social”.

Os direitos do trabalho, portanto, inserem-se nessa nova concepção de direitos relacionados a uma igualdade material, sendo que a constitucionalização dos direitos trabalhistas no Brasil ocorre, pela primeira vez, por meio da Constituição de 1934.

É importante destacar que o reconhecimento da desigualdade estrutural existente no mercado de trabalho também tem forte fundamentação teórica na ciência da economia. Como destacam Silva e Horn 14:

Na obra que simboliza o nascedouro da ciência da economia, A riqueza das nações, Adam Smith comenta sobre as desvantagens do trabalhador na barganha individual em virtude de sua sobrevivência física correr perigo quando a força de trabalho não encontra compradores: “Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe. […] Em todas essas disputas o empresário tem capacidade para agüentar por muito mais tempo. Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois anos com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana, poucos consegui- riam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano, sem emprego […]”

 

Nesse contexto, toda a estrutura normativa do Direito do Trabalho emerge a partir da constatação fática da diferenciação social, econômica e política dos sujeitos que compõem a relação de emprego: de um lado o em- pregador, que age naturalmente como ser coletivo, isto é, agente socioeconômico e político cujas ações produzem impacto na comunidade, e de outro, o empregado, ser individual e sem capacidade de, isoladamente, produzir ações de impacto comunitário 15.

Como leciona Delgado, o Direito do Trabalho incorpora em seus princípios, regras e institutos um valor finalístico que marca a direção de todo o sistema jurídico que compõe, que consistiria na melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica. Nas palavras do autor:

 

Sem tal valor e direção finalística, o Direito do Trabalho sequer se compreenderia, historicamente, e sequer justificar-se-ia, socialmente, deixando, pois, de cumprir sua função principal na sociedade contemporânea. 16

 

O princípio da proteção, corolário do Direito do Trabalho, surge como norteador de todos os demais princípios juslaborais e tem por escopo funda- mental justamente a busca pelo equilíbrio no plano jurídico das partes integrantes da relação de emprego – empregado e empregador, desiguais do ponto de vista econômico e político. Nas palavras de Luiz de Pinho Pedreira da Silva, “dos princípios fundamentais do Direito do Trabalho é o da proteção o mais relevante e mais geral, dele constituindo os demais simples derivações. A proteção do trabalhador é causa e fim do Direito do Trabalho, como revela a história deste.” 17

Além da desigualdade reconhecidamente existente no mercado de trabalho, Silva e Horn sintetizam outros quatro fundamentos clássicos para a concepção do instituto, quais sejam: 1) a subordinação jurídica do empregado ao empregador; 2) a dependência econômica do empregado em relação ao empregador, 3) o envolvimento da pessoa em si do trabalhador na execução do contrato do trabalho e 4) o desconhecimento generalizado acerca dos direitos por seus titulares e destinatários (como lembra Pedreira da Silva). 18

É claro que, se por um lado o Direito do Trabalho emerge com funda- mental importância e relevância histórica por sua finalidade maior de proteção do trabalhador, garantindo-lhe um padrão civilizatório mínimo, por outro, são conhecidas as críticas por seu caráter conservador ao legitimar a relação de produção básica da sociedade contemporânea, a relação de emprego. Ainda no magistério do professor Pedreira da Silva:

 

Vêem uns no Direito do Trabalho – como observam F. Carinci e seus coautores, mestres italianos dessa matéria como ele – o remédio efetivo, embora progressivo, determinante de um real e completo resgate da inferioridade sócio-econômica do trabalhador, mas ad- vertem os mesmos professores que, por outro lado, e de uma diversa ótica ideológica, se considera que o ordenamento jurídico produzido por uma sociedade capitalista, ao legitimar o trabalho subordinado, a divisão da sociedade em classes e as existentes relações de poder, embora podendo melhorar os níveis de proteção e de bem-estar dos trabalhadores, não estaria em condições de acolher plenamente as instâncias emancipatórias destes últimos ou de modificar as raízes da disparidade. A legislação do trabalho seria, em substância, considerada mero instrumento de racionalização do conflito industrial, destinado a garantir a sobrevivência do sistema através de uma obra de mediação das contradições internas. 19

 

E arremata: “em suma, o Direito do Trabalho é ambivalente porque realiza duas funções: a de proteção ao trabalhador e a de conservação da ordem social”. 20

O processo do trabalho, apesar de sua autonomia em relação ao Direito Material do Trabalho, segue a lógica e as concepções sociais/protetivas desse direito. Por esse motivo, deve ser simples e célere, de forma a possibilitar o maior acesso de cidadãos a essa Justiça Especializada. O Direito Processual do Trabalho tem por objetivo, portanto, dar efetividade aos direitos trabalhistas, permitindo que os trabalhadores tenham pleno acesso ao Judiciário e possam obter desse órgão estatal uma rápida resposta para suas pretensões de natureza trabalhista 21. Tal como o Direito Material do Trabalho, o Direito Processual do Trabalho também teria por fim maior atenuar as conhecidas desigualdades sociais, econômicas e políticas existentes entre empregados e empregadores.

Em seu artigo “Discriminação e Processo do Trabalho”, Mallet, acreditando que o processo do trabalho ainda não permitiria a devida igualdade material entre as partes envolvidas, bem resume por que o processo não deve ser neutro:

[…] tal como o legislador tem o dever de procurar compensar as desigualdades existentes no plano material, sendo isso inclusive exigência constitucional (art. 3°, inciso III, da Constituição), tem, da mesma forma, o dever de fazê-lo também no plano processual. […]

Por isso, a legislação que se limitasse a tratar de modo rigorosamente igual ambos os litigantes, sem quaisquer distinções, mais do que contribuindo para a adequada solução do litígio, estaria freqüentemente trazendo, para o campo do processo a desigualdade existente entre as partes, comprometendo a qualidade da decisão prolatada. Com efeito, a situação concreta de cada um dos sujeitos envolvidos no litígio raramente é idêntica. As informações que alguns possuem outros não dominam; o custo da demanda para uns inibe a propositura da ação, enquanto para outros mostra-se insignificante; as provas que certos litigantes podem produzir com grande facilidade, outros não têm condição alguma de apresentar em juízo; a demora na solução do litígio, que por vezes beneficia uma das partes, lesa profunda- mente o direito da outra. Essas diferenças, existentes no plano dos fatos e que se mostram importantes e significativas, têm que ser com- pensadas pela legislação, para que o processo se desenvolva de modo efetivamente equânime e atinja resultado adequado.[…]

Ausente essa efetiva paridade prática, a consagração, no processo, da igualdade apenas formal de tratamento das partes somente agrava a desigualdade real existente entre elas, discriminando aquela que se encontra em posição menos favorecida. […]

A idéia de dever o processo permanecer neutro, indiferente à condição peculiar dos litigantes, não se sustenta e contrasta com o reconhecimento, hoje pacífico, da insuficiência da igualdade meramente formal. 22

A doutrina não é unânime acerca dos princípios que regem o processo do trabalho. Giglio enumera, em primeiro plano, o princípio protecionista, enfatizando que o caráter tutelar do Direito Material do Trabalho se transmite e vigora também no Direito Processual do Trabalho 23. E, citando Ada Pellegrini Grinover, sintetiza que “o processo e o procedimento tomam feição distinta conforme o direito material a que se visa proteger”:

Ora, o Direito Material do Trabalho tem natureza profundamente diversa dos demais ramos do Direito porque, imbuído de idealismo, não se limita a regular a vida em sociedade, mas busca transformá-la, visando uma distribuição de renda mais equânime e a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e de seus dependentes; por- que os conflitos coletivos do trabalho interessam a uma grande par- cela da sociedade, e têm aspectos e repercussões sociais, econômicos e políticos não alcançados, nem de longe, pelos litígios de outra natureza; porque o Direito Material do Trabalho pressupõe a desigualdade das partes e, na tentativa de equipará-las, outorga superioridade jurídica ao trabalhador, para compensar sua inferioridade econômica e social diante do empregador; e porque diz respeito, é aplicado e vivido pela maioria da população. 24

O princípio da proteção seria concretizado pela gratuidade do processo, que, isentando pagamento de custas e despesas, aproveita ao empregado e não ao empregador; pela assistência judiciária gratuita, que também é fornecida ao empregado e raramente ao empregador, bem como pelo impulso processual ex officio 25.

O professor Bezerra Leite 26, completando o argumento de Giglio, lembra que as disposições do Art. 844 da CLT, que prevêem que a ausência dos liti- gantes à audiência trabalhista implica o arquivamento dos autos para o autor (geralmente empregado) e revelia e confissão ficta para o réu (geralmente empregador), bem como a obrigatoriedade de depósito recursal (CLT, Art. 899, § 4°), exigido apenas do empregador, seriam da mesma forma reflexo da adoção do princípio da proteção pelo processo do trabalho.

Na concepção de Giglio, também fariam parte do leque principiológico do processo do trabalho o princípio da jurisdição normativa, o princípio da despersonalização do empregador assim como o princípio da simplificação procedimental, que, segundo o autor, se refletiria pela outorga do jus postulandi às partes, pela comunicação postal dos atos processuais, dentre outros 27.

Bezerra Leite 28 elenca como princípios peculiares ao Direito do Trabalho o princípio da proteção, o princípio da finalidade social (que teria por escopo permitir ao juiz uma atuação mais ativa no auxílio ao trabalhador para uma solução mais justa da demanda), o princípio da busca da verdade real (reforçado pelo Art. 765 da CLT, que confere aos juízes ampla liberdade na direção do processo e que dispõe que os magistrados “velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclareci- mento delas”), o princípio da indisponibilidade (o processo do trabalho teria por função fundamental a busca da efetivação dos direitos indisponíveis dos trabalhadores), o princípio da conciliação, bem como o princípio da normatiza- ção coletiva (que confere o chamado poder normativo à Justiça do Trabalho). A partir do direcionamento dado pelos princípios processuais trabalhistas, também tem relevância o procedimento oral, que norteia a construção das normas e técnicas próprias à marcha processual trabalhista. Como leciona Giglio, é importante não confundir princípios com técnicas, particularidades ou peculiaridades do processo do trabalho, 29 motivo pelo qual este ensaio não encampou o procedimento oral e seus desdobramentos como partes integrantes dos princípios processuais trabalhistas. Referido procedimento pode ser resumido em cinco principais características, quais sejam, a primazia da palavra, a concentração dos atos, a imediatidade, a identidade física do juiz e a irrecorribilidade das decisões interlocutórias.

Pela característica da primazia da palavra privilegiam-se as manifestações orais, em audiência, pelas partes, advogados e juiz. Embora não seja um procedimento exclusivamente oral, esses debates são enfatizados em relação aos escritos, para propiciar um maior contato do juiz com as partes e com os argumentos do litígio em si. Como, a princípio, as audiências são unas, tanto incidentes processuais suscitados em contestação como manifestações sobre a defesa e documentos devem ser debatidos oralmente pelas partes, sob pena de serem superados com o prosseguimento da instrução processual. Também é em virtude da característica da primazia da palavra que são raras as manifestações em razões finais feitas na forma escrita nos litígios trabalhistas.

Por imediatidade, em resumo, entende-se a necessidade de os atos de instrução serem realizados perante o juiz, que, a partir desse contato direto com as partes e testemunhas do processo, poderá formar seu convencimento tanto pelos próprios depoimentos prestados como pelas sensações provocadas diante daqueles depoimentos. Ou seja, mesmo que as testemunhas não tenham afirmado expressamente determinados fatos, o modo como testemunharam pode influir no processo decisório, podendo o juiz do trabalho, em sua sentença, fazer menção às impressões que teve no decorrer da instrução probatória 30.

Por isso, a doutrina entende que a imediatidade permite maior controle do processo.

A identidade física do juiz é desdobramento da característica supracitada e consiste na necessidade de o juiz que instruiu o processo julgar aquele mesmo litígio.

Por concentração dos atos entende-se a realização de atos processuais com a maior proximidade possível. Uma das expressões desse princípio é a realização da chamada audiência una, com a prática de todos os atos processuais de primeira instância nesse mesmo momento processual: a tentativa de conciliação, o recebimento da defesa e a resolução sobre eventuais incidentes processuais existentes, a fixação dos pontos controvertidos com a definição e produção das provas necessárias ao deslinde da controvérsia e, até, a prolação da sentença. A CLT acolheu essa sistemática (da audiência una) em seu artigo 884, todavia, muitas vezes a realização de todos os atos em uma só audiência não é possível, dadas algumas peculiaridades do processo (necessidade de produção de prova pericial, por exemplo). De qualquer forma, mesmo que não seja possível a realização de audiência una, a concentração dos atos processuais é fonte de celeridade do processo do trabalho e deve ser seguida, na medida do possível.

Por fim, por irrecorribilidade das interlocutórias compreende-se a impossibilidade de impugnação imediata das decisões processuais proferidas no decorrer do processo. Essa característica não significa a impossibilidade definitiva de impugnação dessas decisões, mas sim a postergação dessa impugnação ao momento de prolação da sentença.

Ou seja, todas as características do procedimento oral, acolhido pelo processo do trabalho, visam permitir que o magistrado responsável pela condução e decisão do processo tenha uma melhor compreensão do litígio para além das defesas técnicas elaboradas por advogados. Essa mesma lógica principiológica inspira a diminuição das formalidades comuns aos demais feitos judiciais, bem como objetiva acelerar o andamento dos litígios pela simplificação de seus procedimentos, ampliando o acesso ao Judiciário Trabalhista e possibilitando que o trabalhador receba as verbas de caráter alimentar a que faz jus em menor espaço de tempo possível.

A construção dos princípios processuais trabalhistas, como visto, segue a mesma concepção protetiva enraizada no Direito do Trabalho. A partir de agora tentaremos relacionar os princípios norteadores do direito/processo do trabalho às conclusões das pesquisas sobre imaginário popular supracitadas.

 

ALGUMAS CONCLUSÕES

Como já mencionado, entendemos que a atuação institucional pode e deve ser considerada como variável de peso no processo de consolidação da cidadania no Brasil, principalmente levando-se em conta os diversos obstáculos que diminuem as possibilidades de vê-la concretizada.

Nesse panorama teórico, procede analisar a atuação de instituições voltadas a permitir a concretização de direitos, como é o Judiciário Trabalhista.

Diante dos resultados obtidos nas pesquisas, que demonstram, além de um maior conhecimento dos direitos sociais pelas populações mais carentes, o maior acionamento e a maior crença na Justiça do Trabalho, pode-se refletir sobre possíveis repercussões dos próprios princípios inspiradores do direito/ processo do trabalho nesse contexto.

Uma hipótese que parece procedente é que esse maior acionamento e essa maior crença no Judiciário Trabalhista poderiam ter relação com os institutos do direito e do processo do trabalho que pretendem simplificar os litígios e dar celeridade às demandas, reequilibrando partes em conhecida desigualdade econômica e política (empregado e empregador). Esses princípios esta- riam repercutindo, portanto, na maior efetividade dos direitos postulados e interferindo, pois, na percepção que as camadas populares têm de uma instituição encarregada de efetivar seus direitos, o Judiciário Trabalhista.

Também devem ser destacadas as prerrogativas conferidas aos magistrados que enfatizam o maior contato com as partes e os advogados.

Como já salientado, existem dois modos de intervenção das instituições no processo de reconhecimento e efetivação de direitos, sendo que um deles envolve o Estado e seus atores diversos, que reforçam ou alteram o imaginário político 31.

A forma como são conduzidos os feitos levados à Justiça do Trabalho, permeada por uma lógica apta a propiciar a redução das formalidades (em comparação aos procedimentos judiciais que tramitam em outras esferas do Judiciário), também poderia ser fator a influenciar o imaginário popular. Seria um fundamento do processo do trabalho permeando a própria atuação dos magistrados trabalhistas, como agentes estatais, e influindo, também, no contexto de legitimação de uma instituição estatal.

De qualquer forma, apesar de a pesquisa utilizada neste trabalho ter demonstrado uma maior confiança no Judiciário Trabalhista, também demonstrou que ainda existe um grande caminho a ser percorrido para superar os dados de exclusão ao acesso ao Judiciário. É nesse panorama que, para além dos princípios protetivos do processo/Direito do Trabalho, enfatizam- se a responsabilidade social dos operadores do direito (em especial dos magistrados e advogados) e a repercussão de suas ações no imaginário popular.

A noção dessa responsabilidade, aliás, foi constatada de forma brilhante pelo professor e magistrado Márcio Túlio Vianna. Em ensaio sobre a discriminação intitulado “O dia-a-dia do juiz e as discriminações que o acompanham”, foi enfático ao afirmar que:

[…] Mesmo na Justiça do Trabalho, onde tudo é menos formal, há um clima de solenidade que ajuda a reproduzir as disparidades so- ciais. Por mais que o juiz, às vezes, pareça simpático à causa do tra- balhador, quem se identifica com ele é o empregador: ambos falam a mesma língua, vestem-se de forma semelhante, têm a chave para decodificar os símbolos. […]

Assim é, por exemplo, que o juiz discrimina, ainda que de forma leve, quando diz coisas tão inteligíveis como “operou-se a preclusão”, ou quando cita Carnelutti, ou quando simplesmente altera a voz, franze a testa ou murmura alguma coisa ao digitador de audiência: o ritual escapa ao controle do empregado, e embora o próprio empregador nem sempre o domine, é bem mais fácil para ele adivinhar seus sig- nificados, prever as reações, intuir o seu próprio comportamento. […] Vejo hoje, com vinte e um anos de atraso, que o processo ou o procedimento é algo muito mais intrincado e complexo do que um simples conjunto de regras formais, entre as quais o juiz se movimenta. É também o modo de falar, o jeito de ouvir, a forma de olhar; são as vestes talares, o estrado alto, o linguajar rebuscado, o argumento mais hábil. É tudo isso e muito mais: como as raízes de uma árvore, ele se irradia para além dos papéis, para além da lei e para fora da sala de audiências. Se o que não está nos autos o está no mundo, o que está no mundo está sempre nos autos. 32

Ou seja, como observou o professor, as atitudes do magistrado podem repercutir no imaginário dos cidadãos que acionam o Judiciário Trabalhista, influenciando-os ou desestimulando-os a acreditar na efetividade da instituição como instrumento de concretização de direitos. Em sendo uma instituição voltada para reequilibrar partes em situações tão desiguais, as concepções protetivas do direito e do processo do trabalho não serão suficientes para promover esse equilíbrio se, no dia-a-dia dos operadores do direito, os cidadãos envolvidos nas demandas judiciais não compreenderem os rituais dos tribunais e se sentirem alheios àquele universo.

Como salientado, se a Justiça do Trabalho tem como um de seus maiores objetivos o de facilitar o acesso a essa Justiça Especializada, e entendendo-se que esse acesso à justiça pressupõe a disposição do cidadão em ajuizar uma ação judicial, os magistrados trabalhistas têm responsabilidade social e política de relevância nesse processo. Lembra o professor Carlos Henrique Bezerra Leite que a Constituição cidadã de 1988 também atribuiu papel político de transformação social aos juízes. E, citando Kazuo Watanabe, adverte que somente assim “teremos uma justiça mais rente à realidade social e à necessária mudança de mentalidade pelos operadores do Direito, que torne factível o acesso à ordem jurídica mais justa.” 33 É nesse contexto que o professor cita o discurso de posse da ministra Ellen Gracie no cargo de Presidente do STF, que bem destacou: a difusão e fortalecimento dos juízos de primeiro grau devem ser priorizados. Que todos os cidadãos tenham acesso fácil a um juiz que lhes dê resposta pronta, é o ideal a ser buscado. Que o enfrenta- mento das questões de mérito não seja obstaculizado por bizantino formalismo […]. Que a sentença seja compreensível a quem apresentou a demanda e se enderece às partes em litígio. A decisão deve ter caráter esclarecedor e didático. Destinatário de nosso trabalho é o cidadão jurisdicionado, não as academias jurídicas, as publicações especializadas ou as instâncias superiores. Nada deve ser mais claro e acessível do que uma decisão judicial bem fundamentada. 34

Se esses alertas direcionam-se ao Judiciário como um todo, com mais razão ainda o são em relação ao Judiciário Trabalhista, concebido, como visto, como instrumentalizador de um direito protetivo de importância histórica e relevância social. Cabe destacar, ainda, a existência do jus postulandi no pro- cesso do trabalho, reforçando a todo tempo a necessidade de os atores envolvidos nas demandas (principalmente os juízes) terem sempre a preocupação em procurar diminuir os tecnicismos e transformar os “rituais” dos tribunais em sessões acessíveis que possam ser entendidas por quaisquer cidadãos.

Mas a responsabilidade (social) do advogado também deve ser desta- cada nesse processo. Editado pela primeira vez em 1935, o livro Eles, os juízes, vistos por um advogado, do conhecido jurista Piero Calamandrei, já expressava a importância da clareza dos debates e argumentos perante o Judiciário:

Grande advogado é aquele que consegue falar na audiência com a mesma simplicidade e a mesma limpidez com que falaria ao juiz encontrado na rua; aquele que, quando veste a beca, consegue dar a im- pressão de que pode confiar nele como se estivesse fora da audiência. 35 […]

O processo se aproximará da perfeição quando tornar possível, entre juízes e advogados, aquela troca de perguntas e respostas que se desenrola normalmente entre pessoas que se respeitam, quando, sentadas em volta de uma mesa, buscam em benefício comum esclarecer reciprocamente as idéias.

Fragmentando a sustentação oral num diálogo, a arte oratória sairá perdendo, mas a justiça sairá ganhando. 36

Todas essas práticas, somadas aos princípios protetivos inspiradores do direito e do processo do trabalho, parecem ter grandes chances de interferir no imaginário popular e nas percepções que os cidadãos têm sobre a atuação do Judiciário Trabalhista. Se a Constituição Federal é exaltada por seu capítulo dedicado aos direitos sociais, a discussão sobre a efetividade de tais di- reitos vai além das barreiras dogmáticas relacionadas aos institutos do direito/ processo do trabalho e é temática de fundamental importância.

Ou seja, as discussões sobre cidadania e acesso à justiça (do trabalho) no Brasil se entrelaçam às questões relacionadas aos fundamentos teóricos do direito e do processo do trabalho, bem como àquelas que irão interferir na decisão do cidadão em acionar o Judiciário. Como salientado na parte introdutória deste artigo, o tema do acesso à justiça envolve o reconhecimento das barreiras sociais e culturais que afetam o acesso das camadas menos favoreci- das à justiça (e que não se esgotam na dimensão econômica). Os cidadãos com menos recursos tendem a conhecer pior seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer como jurídico um problema que os afete, e, em segundo lugar, mesmo que reconheçam esse problema, como violação a um direito, é necessário que essas pessoas se disponham a ajuizar uma ação judicial. 37

Se as pesquisas demonstraram que os cidadãos que acionam o Judiciário do Trabalho tendem a confiar mais na imparcialidade da instituição após uma primeira experiência nessa esfera, o modo de tramitação do litígio trabalhista pode ser considerado como eventual hipótese explicativa desses dados: como já dito, talvez por ser um procedimento, em tese, mais simples e célere, preo- cupado em se aproximar das realidades fáticas que fundamentam os conflitos, possibilitando, por fim, a efetivação de seus direitos.

Essas são apenas algumas hipóteses para esse fenômeno, sendo necessário ponderar, de qualquer forma, que a pesquisa citada neste ensaio não procurou esclarecer os motivos pelos quais os entrevistados passaram a ter mais confiança na resolução dos conflitos pelo Judiciário Trabalhista após o primeiro contato com essa instituição. Além dos princípios que norteiam o direito/processo do trabalho, não podemos deixar de considerar que o maior conhecimento dos direitos ligados ao trabalho (que pode ter origem nas circunstâncias históricas de reconhecimento dos direitos sociais no Brasil 38) é variável de peso no acionamento da justiça encarregada de efetivar esses direitos: a Justiça do Trabalho.

De qualquer forma, a temática inspira reflexão, reforçando a responsabilidade social do magistrado para além da mera resolução formal das de- mandas que lhe são levadas diariamente. Ou seja, o modo como se dirige às partes, a maneira de conduzir o processo, as sentenças proferidas, enfim, todos são fatores que podem influir, de forma positiva ou negativa, na compreensão que os cidadãos fazem do Judiciário Trabalhista (mesmo que os próprios magistrados nem sempre tenham a noção da repercussão de seus atos perante os cidadãos que acionam o Judiciário).

Enfim, por tudo o que foi exposto, e como é da natureza dos trabalhos de pesquisa, percebe-se que este ensaio teve apenas caráter tentativo. Além de sugerir eventuais repercussões dos princípios do direito/processo do trabalho nos estudos sobre acesso à justiça, procurou sublinhar a atuação dos próprios magistrados trabalhistas, que, para além da resolução formal dos litígios, interfere no próprio processo de formação da cidadania do País.

 


 

1 Cappelletti e Garth (1988, p. 15-18); Santos, B. (1995, p. 167).

2 Santos, B. (1995, p. 170).

3 Ibid. Para além da questão social, a instrumentalização do acesso ao Poder Judiciá- rio e a conscientização dos cidadãos excluídos de seus direitos também são fatores que repercutem no grau de desenvolvimento nacional. O Bird, por exemplo, reco- menda a reforma do Judiciário como fator de desenvolvimento nacional, estando entre as medidas propostas “o fortalecimento da educação jurídica, o aperfeiçoa- mento da administração dos tribunais, a promoção do treinamento judicial, o de- senvolvimento de sistemas alternativos de solução de disputas e a melhora do acesso à justiça” (Freitas Filho, 1999).

4 Oliveira (2000; 2002).

5 Esta seção foi objeto de apresentação anterior em artigo da autora publicado na Revista Trabalhista Direito e Processo, n. 30.

6   Essa pesquisa transformou-se em vários textos que foram reunidos no livro Cida- dania, Justiça e Violência, da Editora Fundação Getúlio Vargas, organizado pelos professores Dulce Chaves Pandolfi, José Murilo de Carvalho, Leandro Piquet Carneiro e Mario Grynspan.

7 Pandolfi (1999, p. 49).

8 Ibid., p. 53.

9 Grynspan (1999, p. 103).

10 Ibid., p. 105.

11 Ibid.

12 Pandolfi (1999, p. 54).

13 Bercovici (2008).

14 Silva e Horn (2008, p. 191).

15 Delgado (2007, p. 195).

16 Ibid., p. 58.

17 Silva (1999, p. 26).

18 Silva e Horn (2008, p. 196).

19 Silva (1999, p. 35).

20 Ibid., p. 36.

21 Maior (1998, p. 22).

22 Mallet (2000).

23 Giglio (1997, p. 66).

24 Ibid., p. 66-67.

25 Ibid., p. 67.

26 Leite (2006, p. 74).

27 Giglio (1997, p. 67-68).

28 Leite (2006, p. 72-82).

29  Giglio (1997, p. 65).

30 Maior (1998, p. 22).

31 Oliveira (2000; 2002).

32 Viana (2000, p. 272-274).

33 Leite (2006, p. 43).

34 Apud ibid.

35 Calamandrei (1997, p. 87).

36 Ibid., p. 79-80.

37 Santos, B. (1995, p. 170).

38 Por esse motivo, ficou famosa a expressão “cidadania regulada”, utilizada por Wanderley Guilherme dos Santos para caracterizar a política de expansão dos di- reitos à época: “Sugiro que o conceito-chave que permite entender a política eco- nômico-social pós-30, assim como fazer a passagem da esfera da acumulação para a esfera da eqüidade, é o conceito de cidadania, implícito na prática do governo revolucionário, e que tal conceito poderia ser descrito como o de cidadania regulada. Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram- se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo de direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei” (Santos, W., 1979, p. 75).


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RESUMO

O artigo aborda a temática do acesso à justiça, focando suas análises na Justiça do Trabalho e na principiologia do direito e do processo do trabalho. Para embasar suas argumentações, utiliza dados da pesquisa denominada “Lei, justiça e cidadania”, que fora realizada com intuito de compreender o imaginário popular sobre os direitos, percepções políticas e instituições. Tal pesquisa demonstrou, de forma geral, que os cidadãos conhecem mais os di- reitos relacionados ao trabalho e ten- dem a confiar mais na Justiça do Trabalho (em comparação com a Justiça Comum). Diante desses dados, pro- cura relacionar possíveis repercussões dos institutos do processo do trabalho nesse contexto de maior legitimação do Judiciário Trabalhista, ressaltando a importância da atuação institucional no processo de efetivação dos direitos no Brasil.

ABSTRACT

The article addresses the subject of access to law courts, focusing its anal- yses on Labor Courts, as well as law and labor process principles. To sup- port its reasoning, this work draws on data from the “Law, justice and citi- zenship” survey, which was carried out to understand popular imagery in connection with rights, political per- ception and institutions. In general terms, such survey has shown that cit- izens are more acquainted with labor rights and tend to have more confi- dence in Labor Courts (compared to Regular Courts). In view of the said data, this article seeks to correlate possible repercussions from law insti- tutes and labor process in this context of higher legitimization of the Labor Judiciary System, reinforcing the relevance of institutional participation in the process of rights enforcement in Brazil.

 

Palavras-chave: acesso à justiça, ima- ginário popular, Direito do Trabalho, processo do trabalho.

Keywords: access to courts, popular imagery, labor courts, labor process.

 


 

Ana Luísa de Souza Correia de Melo Palmisciano, advogada do escritório Machado Silva & Palmisciano advogados, professora da UFRJ e da Puc-Rio

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