O papel do Advogado na defesa da Democracia

Autor do Artigo: Ana Kelly Jansen de Amorim

Conceito etimológico das palavras advogado e democracia:

No interesse de entender o sentido das coisas, sentido primordial ou primeiro sentido, é sempre interessante achar o significado etimológico das palavras, facilita compreender melhor os conceitos jurídicos com os quais lidamos. Então quando me foi proposto e construir um debate sobre o tema “Advocacia em defesa da Democracia”, imediatamente me ocorreu que deveria introduzir o tema trazendo o significado etimológico ou semântico das palavras chaves do tema, quais sejam: Advogado e Democracia.

Advogado/Advogar do latim advocatus, particípio passado de advocare, igual a “chamar junto a si”, formado pelo prefixo ad que significa “aproximação, perto ou junto”, mais vocare, igual a “chamar, apelar para”. Ou melhor, ad (junto) + vocare ou vocatus, ou ainda uogar que quer dizer “chamar, convocar”, logo  Ad + uogar = o mesmo que advogar, uogar significa “interceder em favor de”.

Assim é correto entender que advogar é se colocar no lugar do outro, interceder em favor de alguém e conseguir se pôr no lugar desse alguém (hoje as pessoas definem isso como “empatia”), então quando vamos à origem entendemos melhor as coisas, logo ADVOGAR é interceder em favor de alguém!

Essa necessidade de vestir o sofrimento e a angústia do próximo, de sentir-se violado e agredido quando seu cliente é vítima de um mal injusto, impõe ao causídico o desejo de extinguir não apenas a iniquidade sofrida no caso que ele defende, mas em qualquer caso. Os advogados, assim, estão fadados a defender a sociedade”. [1]

Assim como o próprio sistema político, a palavra “democracia” tem origem do grego, e vem de DEMOKRATIA, sua versão em latim era DEMOCRATIA também, mudando apenas a grafia. O termo tem em sua base duas palavras gregas: DEMOS, que significa “povo, distrito” e KRATOS que significa “domínio ou poder”, o que nos traz o significado de “poder do povo” ou “governo do povo”.

Ora, se é assim, a proposta é pensar como nós advogados vamos interceder em favor do poder do povo, ou seja, em favor da DEMOCRACIA hoje no Brasil, diante do contínuo ataque que vem sofrendo, em especial do maior mandatário da nação.

 

O que é Democracia como sistema político?

Todos sabemos que vivemos num Estado Democrático de Direito, sendo que este conceito não se confunde nem com o conceito de Estado de Direito e nem com o de Estado Democrático.

No interesse de promover a conceituação deste instituto, é preciso que se faça desde logo uma análise direta e objetiva do que seria um Estado Democrático, com suas características específicas e do que se constitui o Estado de Direito. No entanto, é importante que se diga que o conceito de Estado Democrático de Direito transcende ao conceito de Estado de Direito e de Estado Democrático, em síntese aquele é maior.

A soberania popular é princípio fundante do Estado Democrático, o povo ou cidadão, no exercício da cidadania, é titular do poder constituinte, é quem legitima todo o poder político. Assim, o Estado Democrático tem como condição  primordial a participação de todas e cada uma das pessoas de forma ativa na vida política do país.

No Brasil, o princípio da soberania popular se consagra através dos artigos 1º, parágrafo único e artigo 14, caput da CF/1988.

A consagração do princípio da soberania popular se sintetiza na afirmativa “todo poder emana do povo”. Isso é a síntese do conceito de Democracia.

Por sua vez “o estabelecimento da democracia é um degrau necessário à construção do direito”[2], nas palavras de José Roberto de Castro Neves, advogado e professor de Direito Civil da PUC/RJ.

José Roberto é um dos mais interessantes pesquisadores e autores sobre a história do Direito, em sua obra “A Invenção do Direito – As Lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes”, onde ele traz os clássicos Gregos como fontes do Direito, é interessante a lição onde ele leciona sobre “os persas e a democracia”:

A peça narra a desgraça que se abate sobre Xerxes, rei dos persas, com a derrota que sofreu contra os gregos. Xerxes acreditou-se invencível, e essa soberba desmesurada, a hybris, foi responsável por sua derrocada.

(…)

A soberba do rei persa também se mostra na sua crença de que sozinho seria fonte do poder, quando, na Grécia de Ésquilo, ele adivinha do povo. Edith Hall entende que nessa interpretação de Os persas, “de que a peça se ocupa da celebração do sistema democrático ateniense, com seu núcleo compacto de cidadãos (…) é sustentada pela apresentação dos persas e seu império como deficientes exatamente nas qualidades que os atenienses apreciavam imaginar que caracterizavam o sistema democrático: liberdade de expressão; ausência de protocolo hierárquico; responsabilidade dos magistrados  e proteção do indivíduo diante das leis”.

Num determinado momento da peça, a rainha dos persas pergunta quem é o comandante dos gregos. O corifeu, líder do coro responde: “Eles não são escravos nem súditos de nenhum mortal”.

Está claro ao povo de Atenas: eles vivem numa democracia. Não há um tirano. A ordem emana da coletividade.

A grande lição é a de que a democracia representa um avanço para a civilização. O poder é legitimado pelo povo”[3].

Em capítulo intitulado “A Trilogia Oresteia – O nascimento do Direito”, José Roberto de Castro Neves correlaciona as tragédias gregas à criação do direito como instrumento de controle social, vejamos:

“O tema é uma maldição familiar, agravada geração após geração, pela culpa dos membros da família dos átridas, cuja lenda a plateia de Atenas conhecia bem.

(…)

Em todas as peças que compõem a trilogia Oresteia, identifica-se o elemento da hereditariedade da culpa, isto é, as personagens respondem por atos nefastos cometidos por seus antepassados, embora eles próprios agravem essa culpa, por também tomarem decisões equivocadas. Assim, este conceito permeia a obra do dramaturgo.

(…)

Assim, a vingança, inicialmente, estava intimamente relacionada à justiça.

(…)

A justiça da vingança é substituída pela benevolência. A retribuição do mal é sucedida por uma nova ordem. Sob esse ponto de vista, Ésquilo se antecipou quase cinco séculos ao evangelista Mateus.

(…)

Há como se vê, a instauração de uma nova ordem, A antiga Lei de Talião, a punição familiar (do guénos), defendida pelas Eríneas, perde espaço. A nova lei vem de Apolo, deus das luzes, em prol da cidade e da civilização. As Eríneas vivem no Hades, o inferno dos gregos, enquanto Apolo habita o ensolarado Olimpo.

Apolo encaminha Orestes a um tribunal, presidido por Atenas, no qual seus argumentos serão ponderados. Doze cidadãos da cidade de Atenas compõem o painel de julgadores, cabendo à deusa votar em caso de empate. Na prática, Apolo advoga para Orestes, enquanto as Eríneas querem sua punição.

(…)

Ao perderem a contenda, com o voto de Atenas, as Eríneas, pelo corifeu, reclamam: Ah, deuses jovens! Pisais em leis antigas”. O matriarcado, numa ordem antiga, era mais relevante do que o patriarcado. Matar a mãe, como fez Orestes, era imperdoável, caso a sociedade fosse matriarcal. Diferentemente, numa sociedade patriarcal, o respeito ao pai era o maior valor, e, assim a vingança de Orestes tinha fundamento. As Eríneas eram deusas antigas, associadas à terra e a uma sociedade matriarcal, diferente de Apolo e Atenas, deuses patriarcais.

(…)

O novo direito ignora a maldição familiar, desconsidera a lei de Talião. As Eríneas reclamam a aplicação da antiga lei, pela qual “as gotas de sangue derramado na terra exigem outro sangue”. A nova lei, diferentemente, trata da culpabilidade individual, aprecia a consciência do agente e as circunstancias do ato. As luzes, trazidas pela ordem dos novos deuses – Atenas e Apolo -, garantem um julgamento isento, levado adiante por um tribunal composto por cidadãos, resguardada a análise da situação do acusado. Trata-se de uma conquista da humanidade.

(…)

A Trilogia oresteia demonstra, com uma nitidez notável, a caminhada do fenômeno jurídico: a necessidade de julgamento, independentemente do fato, com a oportunidade de defesa pelo réu. Um julgamento feito pelos cidadãos, logo, pela sociedade. O fim da vingança privada, a apreciação da culpa, como elemento da punibilidade, a análise das circunstancias e dos valores envolvidos, para que se compreenda a situação são pilares da civilização, sem os quais não há dignidade. É, como Ésquilo expôs numa linda metáfora, a chegada da luz.

(…)

Os gregos nos deram os cromossomos da civilização ocidental. Nós, contemporâneos recebemos esse legado extraordinário, alicerce na construção do ordenamento jurídico. Prometeu acorrentado é uma franca denúncia à tirania. Na Oresteia, firma-se a necessidade de ampla defesa. Antígona, por sua vez, representa a luta pelos ideais, pela justiça, um hino a legítima rebeldia. Em troianas, a dignidade da pessoa humana é exaltada. Em a revolução das mulheres, resta claro que a autocrítica é elemento essencial para a construção de uma sociedade sadia.

Todos esses valores foram incorporados à nossa cultura por meio dessas peças de teatro. A partir daí, construiu-se uma teoria do direito, estabelecendo-se as bases para um ordenamento jurídico. Esses dramaturgos, por consequência, inventaram o direito.

Evidentemente, pode-se dizer que o direito nasceu com a organização da sociedade humana, tal como reconhece o brocardo ubi societas, ibi jus, isto é, onde há sociedade há direito!”[4]

 

O advogado como essencial à administração da justiça e como defensor do Estado Democrático de Direito:

A Constituição Federal em seu art. 133 identifica o advogado como figura indispensável à administração da justiça, o que implica em dizer que reconhece e imputa a ele uma responsabilidade, isto é, é dever de ofício do advogado administrar a justiça.

O estatuto da OAB vem, nos três parágrafos de seu art. 2º e arremata dizendo que, o advogado no exercício de sua atividade privada presta serviço público e exerce uma função social.

Para além disso, o código de ética da OAB descreve o advogado como defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, e que deve subordinar sua atividade privada à elevada função pública que exerce.

Diante da missão que nos foi atribuída é forçoso dizer que nós, advogados, não nos furtamos a ela, desde que se forjou os princípios gerais do direito ainda em seu nascedouro, afinal não foi assim quando Apolo advogou Orestes?

 

A história da advocacia e sua contribuição para o mundo:

Quando olhamos pra história recente e as grandes transformações pela quais passou a humanidade, é fácil identificar a atuação direta e essencial dos advogados para alcançar o nível de civilização e o intrincado e sofisticado modelo de democracia.

“Os advogados foram responsáveis por estruturar regras aptas a reger e permitir a vida em sociedade. Os advogados conceberam sistemas organizados e coerentes de leis, que funcionam como as amarras dos relacionamentos humanos.

O Direito é uma forma social e mental de ordenação da sociedade”[5].

Além de estabelecer critérios básicos sobre o sistema jurídico, os advogados estiveram presentes de forma marcante e até definitiva em todos os movimentos que desaguaram no que hoje temos como modelo de sociedade livre, com segurança e justiça sociais – o que em última instância chamamos de Estado de Direito.

Exemplo dessas lutas capitaneadas por ilustres advogados foram as Revoluções que desenharam o sistema jurídico hodierno.

As Revoluções Protestantes, Gloriosa, Americana e Francesa como qualquer evento histórico relevante tiveram enorme impacto sobre a organização da sociedade no momento de sua eclosão, contudo seus efeitos são produzidos ao longo do tempo, não cessam de imediato, ao contrário se consolidam na posteridade. Tanto é assim que na Revolução Americana apesar de ter havido o reconhecimento da igualdade dos homens em 1776, a escravidão só foi abolida plenamente em 1865. E dessa revolução foram líderes os advogados (Adams, Jefferson, Madison, Hamilton e Jay), e, curiosamente, quase todos chegaram a ser presidentes dos EUA.

Na verdade, até o oitavo Presidente dos EUA todos, à exceção de George Washington, eram advogados, John Adams; Thomas Jeferson; James Madison; James Monroe, etc.

Seguindo essa mesma linha, em que pese a Declaração dos direitos do homem e do cidadão seja de 1789, apenas em 1848 a escravidão foi plenamente abolida nas colônias francesas e, apesar das declarações daquele importante documento que formalizou a Revolução Francesa, as mulheres continuaram como cidadãs de segunda classe, haja vista, que continuaram a não gozar dos direitos tidos como “naturais” ou “universais”, entre eles o direito ao voto. Somente em 1945 elas passaram a ter assegurada a participação na democracia francesa, aliás no século XIX o único país que permitia o voto feminino era a Nova Zelândia (1893).

É verdade que mesmo as ideias mais fortes esbarram em preconceitos e interesses outros, e nesses momentos é que se testa a força dessas ideias, se se mantiverem garantem espaço entre as conquistas da civilização. “De todo modo, consegue-se verificar que a ordem política moderna foi esculpida a partir desses movimentos, que, como se viu, assentaram-se sobre preceitos jurídicos e em moldes burilados por advogados”[6].

São exemplos disso a Revolução Gloriosa (Inglaterra) com Edward Coke, Oliver Cromwell e Shaftesbury, a Revolução Francesa, com Maximilien Robespierre, Georges Jacques Danton, Saint-Just, Desmoulins, a Revolução Cubana, com Fidel Castro, a independência da Índia, com Mohandas Ghandi, e a independência da África do Sul e a luta pelo fim do Apartheid, com Nelson Mandela.

Todos advogados!

Então é indiscutível a relevância da atuação dos advogados na formação e no exercício da Democracia, as previsões contidas na constituição não nasceram nela, ao contrário se impuseram pela força da história.

 

Advogados que cumpriram essa missão e deixaram seu legado de atuação profissional como farol para outras gerações:

No Brasil também não foi diferente, temos grandes nomes do direito que trouxeram contribuição definitiva para organização de nossa sociedade, e essas referências nos apontam ainda hoje o caminho que devemos seguir, só pra ficarmos no passado recente da nossa recente Democracia gostaria de trazer a atuação de dois enormes exemplos de advocacia combativa e comprometida com o ideal de Democracia – aquela inventada pelos Gregos. E, repetindo o que disse Wilston Churchill: “A Democracia é a pior forma de governo (sistema político), fora todos os outros.”

Heráclito Fontoura Sobral Pinto: Esse advogado nascido em 1893, era chamado de “Senhor Justiça”, notabilizou-se pela defesa veemente pelos direitos humanos, tendo advogado para presos políticos em plena ditadura, tanto na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945), quando fez uma defesa inédita em favor de Carlos Prestes e Harry Berger o uso da lei de proteção aos animais, em favor do tratamento humanitário para prisioneiros (Berger tinha sido severamente torturado no cárcere).

Ainda nesse período, defendeu ardorosamente o direito da Família Prestes em reaver a neta Anita Leocádia que nasceu na Alemanha nazista, e que só após intensa batalha jurídica e política foi entregue a sua avó paterna, ficando sua mãe, Olga Benário Prestes, em poder dos nazistas até sua morte precoce num campo de concentração.

Em 1955 defendeu o direito de Juscelino Kubitschek se candidatar à Presidência da República, essa possibilidade estava sendo ameaçada por alas das Forças Armadas que queriam impedir sua candidatura, Sobral Pinto então fundou a Liga de Defesa da Legalidade, onde por ações judiciais e políticas viabilizou a candidatura do futuro Presidente do Brasil. O interessante é que Sobral Pinto se opunha as ideias do então candidato. Mais uma vez não cobrou honorários e após encerrado o processo JK quis indicar-lhe para uma vaga no STF, indicação essa que ele não aceitou por entender que não era ético.

Na ditadura militar de 1964, que apoiou de início em razão de suas posições anticomunistas (Sobral era um homem conservador e de rígidas concepções religiosas), assim que percebeu as arbitrariedades e o caráter antidemocrático do governo militar, posicionou-se contra os militares tendo escrito várias de suas conhecidas cartas, uma em específico foi endereçada ao Presidente da época, o ditador Castelo Branco, nove dias após o golpe militar, escreveu o advogado, textuais: “Sinto-me no dever de comunicar (…) que os argumentos ora invocados para combater o comunismo foram os mesmos que Mussolini invocou na Itália em 1922 e que Hitler invocou em 1934 na Alemanha. (…) Vivo da advocacia, pela advocacia e, para a advocacia, por entre dificuldades financeiras e profissionais que só Deus conhece. Só tenho uma arma, senhor presidente: a minha palavra franca, leal e indomável.”

Sua postura em defesa da Democracia e do Estado democrático de direito o levou a ser preso aos 75 anos, um dia após ser editado o AI-5. Sua prisão desencadeou um movimento entre os advogados brasileiros para sua libertação.

Um fato curioso foi um diálogo travado entre Sobral Pinto e um carcereiro, quando de sua arbitrária prisão. Disse ele em resposta a assertiva do carcereiro que nos idos de 1968 asseverou que o AI-5 marcava o início de uma “democracia à brasileira”. “Existe peru à brasileira, mas não soluções à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos!”

Nos anos 80, quando da redemocratização do Brasil, Sobral Pinto teve participação ativa na campanha pelas Diretas Já, onde num discurso histórico falou à Nação: Quero falar à nação brasileira, através desta multidão de um milhão de conterrâneos meus. Nós queremos que se restaure no Brasil o preceito do artigo primeiro, parágrafo primeiro da Constituição Federal: ‘Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido’. Esta é a minha mensagem. Este é o meu desejo. Este é o meu propósito.” (Sobral Pinto, aos 90 anos, em discurso para um milhão de pessoas no comício pelas eleições diretas na Candelária, Rio de Janeiro, abril de 1984).

A trajetória do advogado e jurista, no antigo sentido do termo, é lindamente contado no documentário O Homem que não tinha preço.

O segundo nome que queremos destacar é o de Raymundo Faoro, esse advogado também teve uma atuação destacada no exercício da advocacia, sem esquecer que além de advogado Faoro era sociólogo, historiador e cientista político, escreveu a obra “Os donos do poder”, onde analisa e discorre sobre a formação sociopolítica do Brasil.

Foi Presidente do CFOAB no período entre 1977 a 1979, em plena ditadura militar e é sobre esse aspecto da vida de Raymundo Faoro que queremos nos debruçar. Entre os anos de 1978 e 1979 um caso escandaloso abalou o Brasil, foram sequestrados no Rio Grande do Sul quatro cidadãos Uruguaios, dois adultos e duas crianças, o caso ficou conhecido como “O sequestro dos Uruguaios” e foi denunciado pela sucursal gaúcha da Revista Veja da Editora Abril. Faoro voltou todo o aparato da OAB nacional em apoio a seccional do RS que formou 2 comissões de advogados para se deslocarem até o Uruguai e refazer o caminho do sequestro, além do apoio à Seccional Faoro dirigiu, em nome da CFOAB, ao Ministério das relações exteriores do Governo do Presidente Geisel e exigiu que este cobrasse das autoridades uruguaias todo apoio aos colegas enquanto durasse a missão, evidentemente que o pedido não só não foi atendido como impuseram dificuldades aos colegas, aliás bem mais que dificuldades, as autoridades policiais uruguaias, co-autoras do sequestro, passaram a vigiar as comissões de advogados tendo inclusive direcionado ameaças ao próprio Raymundo Faoro.

Faoro recebeu um telefonema anônimo em Montevideo, onde o interlocutor “sugeria” que a comitiva brasileira se hospedassem no “Hotel Libertad”, só mais tarde percebeu a ameaça, quando descobriu que “Libertad” era o nome do presídio masculino que se tornou o maior presídio de presos políticos daquele pais.

Faoro não se curvou, e sua insistência resultou no maior trunfo para provar que Lilian e seus filhos menores, Camilo e Fracesca ficaram presos no DOPS de Porto Alegre nas primeiras horas do sequestro. Esse episódio trouxe luz ao nefasto acordo entre os governos ditatoriais da América do sul, em especial Brasil e Uruguai, a chamada “Operação Condor”, responsável por centenas de mortes, desaparecimentos e torturas de cidadãos sul americanos, entre eles Lilian, Universindo e as crianças Francesca e Camilo.

Nesse episódio do “sequestro dos uruguaios”, o papel da imprensa, em especial dos jornalista Luis Cláudio Cunha e o fotógrafo João Batista Scalco da Revista Veja, sucursal do Rio Grande do Sul foi decisivo para o deslinde e a publicidade dado ao caso.

No Pará tivemos grandes nomes da advocacia que nos inspiram no cotidiano e aqui quero destacar dois em especial, José Carlos Castro e Ruy Barata.

No Pará não temos como falar de Direitos humanos sem falar em José Carlos Castro, ilustrando sua figura emblemática no meio jurídico paraense, Zé Carlos, como era conhecido o jurista, protagonizou em agosto de 1986 um episódio que dá conta de como era arrojada sua intervenção profissional, naquele mês ocorreu a XI Conferência Nacional dos Advogados, realizada, em Belém, pelo Conselho Federal da OAB, então presidido por Hermann Assis Baeta. O tema central era a nova Constituição brasileira e o foco era a inclusão dos direitos humanos, da reforma agrária, do ensino público e a democratização da justiça. Respirava- se o ar das incertezas e expectativas de uma nova ordem jurídica que ainda não sabíamos como seria.

Na abertura, o salão principal do Centur (único centro de convenções, à época, de Belém) estava lotado e as autoridades iniciavam os discursos quando, de repente, causando alvoroço e paralisando momentaneamente o protocolo, ingressa no recinto pelo centro um grupo de indígenas em vestes tradicionais próprias, acompanhado pelo advogado José Carlos Castro. Aquele homem miúdo, um caboclo da Amazônia de rosto queimado pelo sol, com seu peculiar sorriso e ousadia, sabia do impacto que essa entrada triunfal causaria não somente nos discursos em andamento, mas principalmente nos debates que se seguiriam e na mídia que acompanhava o evento para evidenciar a importância e a necessidade da inclusão dos direitos dos povos indígenas na Carta Magna. Esse era só um aperitivo da luta que Zé Carlos travou em prol dos indígenas e da Amazônia.

Zé Carlos Castro teve uma relevância muito grande para advocacia paraense, principalmente na área dos Direitos Humanos, apenas para destacar sua atuação na garantia dos direitos dos povos tradicionais registro aqui uma situação que se deu no ano 1988, os indígenas Paulinho Paiakã e Cubei da etnia Kaiapó foram a Washington na sede do Banco Mundial pra reivindicar que a instituição não financiasse 2 projetos hidroelétricos na bacia do Rio Xingu, alegavam os líderes do povo Kaiapó que tais projetos afetariam 10 grupos indígenas e alagaria uma área de 4,5 a 7,5 mil quilômetros quadrados no Estado do Mato Grosso, destruindo parte do Parque Nacional do Xingu. Paiakã e Caubé impressionaram os Técnicos do Tesouro e os representantes dos EUA, Alemanha, Inglaterra e Holanda, representantes dos países que financiariam tais projetos. A repercussão foi enorme na imprensa nacional e estrangeira e meses antes de ser promulgada a constituição cidadã os indígenas foram ameaçados de serem expulsos do Brasil, enquadrados na Lei dos estrangeiros (que proíbe que estrangeiros se manifestem direta ou indiretamente sobre negócios públicos do país), em denúncia formulada pela Ministério Público Federal, com base em inquérito da Polícia Federal e aceita pela Justiça Federal do Pará.

O absurdo foi de tal monta que Zé Carlos obteve ajuda do advogado Luis Eduardo Greenhalg, que na ocasião se manifestou com as seguintes palavras: “O problema, entretanto, é que os índios são, sem dúvida nenhuma a raça mais brasileira do país”. Guido Silveira, Professor titular de Direito Internacional da USP disse, também: “Em toda a minha carreira de advogado nunca vi uma aberração tão grande”.

Os indígenas também foram enquadrados no Código Penal, com a possibilidade de prisão por até 3 anos, por “Intromissão em assuntos de interesse nacional”. O Inquérito da PF foi aberto a pedido do então Ministro da Justiça, Paulo Brossard.

Como se não bastasse, meses depois da instauração do processo, em audiência para oitiva das partes, o Juiz Titular da Vara Federal à época, não permitiu que o cacique Caubé entrasse na sala de audiência trajando suas vestes tradicionais e cocar símbolo de sua liderança da etnia Kaiapó, convocando a presença da polícia na audiência.  Zé Carlos, e ato contínuo alegou crime de racismo do juiz e alegou a suspeição do magistrado com base no despacho da autoridade judiciária que defendeu claramente a aculturação dos indígenas ignorando totalmente as disposições contidas no Estatuto do índio. Em resposta a determinação do juiz para que os indígenas fossem submetidos a perícia médica para “aferir” o grau de aculturação em que se encontravam, Castro interviu contra tal determinação asseverando que “seus clientes só se submeteriam a tais exames se o juiz e o Procurador Federal também passassem pelo mesmo procedimento”!

Zé Carlos denunciou o juiz por racismo no Tribunal Federal de Recursos. Vale lembrar que Zé Carlos era à época Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, certamente o mais lendário dos presidentes da aguerrida Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA, tanto é assim que a nossa Seccional tem uma comenda com o nome do Jurista – Comenda José Carlos Castro de Direitos Humanos.

Esse é um brevíssimo relato histórico de uma das mobilizações que o advogado realizou e que acabou contribuindo para o processo Constituinte que já estava em andamento.

Outro jurista de monta que orgulha a todos nós paraenses foi Ruy Barata.

Ruy Guilherme Paranatinga Barata era natural de Santarém, foi de uma complexidade de talentos que só enumerando suas atividades profissionais pra dar um pálido retrato do que era esse potente paraense. Ruy foi além de advogado, jornalista, cartorário, cantor e compositor, poeta, Deputado, Professor, corregedor, consultor, etc…

Foi preso duas vezes, sempre por razões políticas, ou seja, atos ou declarações que fez em razão de sua atuação como advogado, jornalista ou parlamentar. A primeira prisão foi motivada por uma série de cinco artigos que publicara no jornal local – “O Jornal do Dia”, onde advogava contra a construção de uma estrada chamada “BelCan”, que saia de Belém, contornava Marabá e ia até Jacareacanga, que na época não passava de um campo de aviação que servia aos garimpos.

Nessa mesma época os EUA tinham lançado seus moderníssimos artefactos espaciais que detectavam minérios, e por coincidência a construção da Belcan seria financiada por uma agencia do governo norte americano, a USAID.

Ruy, por meio daqueles artigos, denunciava a espionagem americana com fins de exploração, o que se confirmou em seguida com a descoberta do minério de ferro na Serra dos Carajás, aliás a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo. Segundo Ruy, esse foi um delito imperdoável para os “entreguistas e reacionários”, o último dos 5 artigos foi publicado no dia 31.03.1964 (dia do golpe militar).

Somado a esse fato, Ruy publicou um Poema chamado “me trae uma Cuba Libre”, que circulou muito no meio intelectual paraense e acabou por torná-lo, no imaginário do público em geral um simpatizante da jovem Revolução Cubana. Se não fosse apenas por isso, Ruy costumava receber muitas publicações estrangeiras, EUA, França, Inglaterra, Espanha, Portugal, etc., mas quando passou a ler revistas e periódicos vindos da União Soviética, China e Cuba, que recebia através dos Correios Nacional foi um “Deus nos acuda”, nas palavras dele. Começou a ser visto como uma pessoa extremamente perigosa, entrou definitivamente no radar dos golpistas e mais tarde seus livros e revistas foram apreendidos pela polícia e constam do processo que ele respondeu na Auditoria Militar.

Após o golpe de 64, houve no Pará vários episódios de violência como a invasão do Sindicato dos Petroleiros pela polícia, depois o auditório da Faculdade de Odontologia, onde se passava um seminário, foi assaltado por uma milícia de rapazes que usavam um lenço branco no pescoço e comandados por latifundiários temerosos da Reforma agrária promoveram o terror entre os estudantes, sendo que à frente de todos espancaram o Jocelyn Brasil, tido por Ruy como uma das figuras mais extraordinárias do movimento nacionalista brasileiro.

Ruy foi preso logo depois, e passou 4 meses preso. Na prisão encontrou vários conhecidos e amigos, como relatou em entrevista dada a Alfredo Oliveira e que faz parte da Biografia do Ruy escrita por aquele autor paraense, obra intitulada “PARANATINGA”, na citada entrevista Ruy declarou nunca ter sofrido ou tomado conhecimento de tortura física, mas relata entre gracejos e memórias tristes seus dias no cárcere.

O episódio da prisão ficou marcado na biografia do Ruy, pois depois de sua soltura começou a perseguição civil, foi demitido do cartório “a bem do serviço público”, apesar de a Investigação Sumária não ter apontado qualquer nódoa na sua probidade funcional e também não reconhecer delito algum nas opiniões emitidas por Ruy, mesmo assim o governador do estado o exonerou. Da Faculdade de Filosofia foi compulsoriamente aposentado, com proventos inferiores a 10% de sua remuneração da ativa.

Voltou então a sobreviver do jornalismo profissional, onde muitas vezes teve que assinar seus artigos e colunas com pseudônimos.

Ruy foi preso pela segunda vez em 1966 quando se anunciava a vinda do Presidente Costa e Silva à Belém, talvez essa prisão tenha relação com essa visita e o temor dos militares em que o Ruy fomentasse alguma atividade subversiva para a data. Ficou preso por cerca de 40 dias.

Ruy fez de todas as arbitrariedades que sofreu pérolas de nossa música e literatura e seus poemas célebres marcou a personalidade do povo paraense. Ruy é patrimônio do Pará e volta e meia ouvimos cheios de orgulho seus poemas “Primeiro de maio” ou “O Planeta das Grades”, ou cantarolamos suas canções “Foi assim” e “Esse rio é minha rua”.

Para encerrar, trazemos a reflexão de que nós advogados e advogadas brasileir@s temos grandes e luminosos faróis a nos guiar, sabemos os caminhos que devemos percorrer, e agora, quando a jovem e parece que imatura democracia corre risco iminente e considerável, cabe a nós, a nossa geração, garantir os caminhos abertos por nossos mestres e consolidá-los, cabe-nos  também alargar os caminhos para que neles caibam todas as próximas gerações.

 

Referências:

 

  • Neves, José Roberto de Castro. Como os advogados salvaram o mundo, 1ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2018.
  • Neves, José Roberto de Castro. A invenção do direito – as lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófones, 1ª edição, Rio de janeiro, Editora Edições de Janeiro, 2015.
  • Cunha, Luiz Cláudio. Operação Condor: O sequestro dos uruguaios: Uma reportagem dos tempos da ditadura, 2ª edição, Editora L&PM Editores. Porto Alegre – RS, 2009.
  • Oliveira, Alfredo. Paranatinga, 1ª edição, Editora Falangola, Belém do Pará, 1984.

[1] Neves, José Roberto de Castro. Como os Advogados Salvaram o Mundo, 1ª Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, pag. 17

[2] Neves, José Roberto de Castro. A invenção do direito – As lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófones. 1ª Ed. Rio de Janeiro, 2015, pág. 117.

[3] Neves, José Roberto de Castro. A invenção do direito – As lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófones. 1ª Ed. Rio de Janeiro, 2015, págs. 115,116 e 117.

[4] Neves, José Roberto de Castro. A invenção do direito – As lições de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófones. 1ª Ed. Rio de Janeiro, 2015, págs. 131, 133, 143, 154, 155, 156, 157, 260 e 261.

[5] Neves, José Roberto de Castro. Como os Advogados Salvaram o Mundo, 1ª Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, pag. 267

[6] Neves, José Roberto de Castro. Como os Advogados Salvaram o Mundo, 1ª Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, pag. 269.

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